Sabe quando você é criança e tem a completa certeza de que, algum dia, por alguma razão, algo de extraordinário vai acontecer na sua vida? Eu não.
Minha vida era uma vida ordinária.
Levantava de manhã, chegava atrasada no colégio e passava o tempo todo com sono. Conversava com meus amigos, saía do colégio, chegava em casa, cumprimentava minha mãe, cumprimentava meu pai, fechava a porta do quarto e escutava música pelo resto do dia.
Minha vida era uma vida ordinária. Era.
Não importa, foi o que minha mãe disse quando saiu pela porta de casa e nunca mais voltou.
Porra, foi o que meu pai disse quando fez um buraco, com um soco, nessa mesma porta e depois trancou-se em seu quarto pelo resto do fim de semana.
Meu pai é policial. Minha mãe é uma vadia.
Não tenho medo de não ver meu pai no fim do dia por ele ser um policial. Ele sabe se cuidar. Não tem um posto alto, não se envolve com casos muito perigosos, e, acima de tudo, sabe se cuidar.
Eu já não espero que a porta da sala se abra e minha mãe entre se desculpando. Não espero, nem quero.
Meu pai é policial. Seu salário não é péssimo, mas minha mãe é uma filha da puta.
Sem o dinheiro de antes não podemos ter a tevê a cabo, as assinaturas de revistas, a diarista, o plano telefônico ilimitado, os passeios a praia e minha escola.
Foi por isso que fui transferida para esse colégio.
Disse "foda-se" a professora, por ela ter perguntado de que colégio eu vim pela sexta vez e fui tirada da sala. No primeiro dia.
Não se pode expulsar alunos em colégios estaduais, ouvi dizer. Então foda-se.
Mas esqueci de que ainda podem me suspender.
Uma semana, disse o diretor. Uma semana por expressar raiva numa situação estressante, numa sala irritante, com uma professora inútil que tem como único objetivo contar de sua vida e repetir a frase "tenho mais de quinze anos de magistério".
É por isso que minha mãe é uma vadia.
O caminho da minha casa ao colégio e do colégio a minha casa é uma das melhores partes do meu dia.
O vento gelado que quase rasga meu rosto de manhã, os cochilos no ônibus. O sol ardente que quase me assa viva no começo da tarde, o escutar de conversas toscas no ônibus.
Chego em casa e me fecho no quarto para escutar música; Roymob, para começar. Já não com tanto sono, às vezes toco alguma coisa na flauta. Tenho feito isso cada vez menos.
Até quase anoitecer, aumento o som e escuto Loyd Sync Daughter deitada na cama, encarando o teto. Tive algumas epifanias, algumas vezes, nessa parte. O tipo de coisa tão mindblowing /explodementes que eu esqueço em dois minutos e nunca mais me lembro do que se tratava.
Rotina.
Sento na cozinha para comer com meu pai e só então percebo com quanta fome eu estava.
Dessa vez, nós não conversamos muito. Não só dessa vez, desde que minha mãe saiu de casa...
Consigo contar nos dedos todas as vezes que nos falamos por mais de um minuto desde então.
Um clima de merda.
Há. Acho que meu cérebro finalmente se tocou que devo falar e pensar duma forma repugnante. Talvez, finalmente lembrou-se de quem é minha mãe.