Numa manhã sem brilho após uma vida inteira de tarja preta e uma noite de cogumelos mágicos, Paulo abriu os olhos para se deparar com algo que não tinha contato há mais tempo que conseguia puxar da memória lamacenta e melancólica. Sem qualquer preparo para o encontro repentino, seu coração disparou e um calorão subiu do estômago revirado em direção à cabeça, enquanto volumosas gotas de suor faziam o caminho inverso. Com as mãos trêmulas e encharcadas, esfregou os olhos e teve certeza de que não se tratava de um sonho: havia outra pessoa no quarto.
Ali, em pé diante da cama, uma senhora vestida de preto com um véu quase transparente sobre o rosto encarava Paulo. No mesmo instante em que o olhar pesado o penetrava, descargas elétricas estimulavam o cérebro em busca de pistas sobre como reagir. Há anos nosso protagonista estava recluso, praticamente sem qualquer contato com outras pessoas e submerso nos próprios pensamentos. O simples ato de falar exigia esforço hercúleo e, por um breve momento, pensou que se esquecera como transformar seu incessante e confuso diálogo interno em frases coerentes.
O corpo seguia em ebulição, ruborizando a face de Paulo — cena muito comum durante sua infância. O calor aumentara e o suor já cobria toda a pele, como uma chaleira em fogo alto prestes a apitar. A velha parecia indiferente ao espetáculo que presenciava, talvez pelo fato de conhecê-lo como poucas ou até mesmo por ter certeza de que o melhor estaria por vir — e estava. Paulo ergueu a cabeça, numa tentativa de emergir acima da superfície do oceano de introspecção que o dominara por tanto tempo, e balbuciou: "Acho que vou vomitar".
Botou pra fora mais do que lembrava que havia comido no dia anterior, e a misteriosa senhora seguia como se nada tivesse acontecido. Até que Paulo esticou o braço em direção à mesinha ao lado da cama, onde guardava sua cesta de medicamentos. Afinal, talvez tudo aquilo fosse apenas uma alucinação provocada por um resquício da dose cavalar de cubensis da noite anterior ou até mesmo pela combinação de psicodélicos com os coquetéis diários de antidepressivos e ansiolíticos que o acompanhavam desde que saíra do colégio anos atrás. "Melhor tomar um negocinho e voltar a dormir...", pensou.
Era a deixa que a velha precisava: "A vida é para ser sentida, garoto. Vomite, fique em silêncio, grite, faça o que for preciso, demore quanto achar necessário, mas se você quiser saber quem eu sou deve parar de me estrangular com tarjas pretas."
No começo, os remédios faziam Paulo funcionar como esperado. Sua vida era normal e produtiva, com emprego, amigos e até namorada. No entanto, o tempo tinha outros planos e, após incontáveis trocas de medicação, as dúvidas sobre si mesmo, os pensamentos obscuros, as inquietações sobre o mundo e o neurótico diálogo interno irromperam a frágil crosta de normalidade.
Foi tudo muito rápido: uma sequência de traumas abalou as estruturas e reduziu a pó o resultado de anos de tratamento. Primeiro, a trágica morte dos pais num acidente de carro o pegou de surpresa, embora já tivesse vivido aquele momento milhares de vezes em sua mente. Depois, a crise econômica levou seu emprego de diretor de arte de uma grande agência de publicidade, fazendo-o voltar a duvidar da própria capacidade. O golpe final foi o fim do namoro de cinco anos, na mesma época que os amigos começaram a ter filhos e outras prioridades. Assim, um gatilho após o outro, Paulo acabou enfiando um revólver na boca; em vão. "Puta que pariu, sou tão covarde que não presto nem pra me matar."
Sem dinheiro, tempo e saco pra voltar pra terapia, Paulo passou a falsificar receitas médicas e se automedicar. No cardápio, sertralina, paroxetina, haldol, fluoxetina, clonazepam, codeína, toda sorte de 'inas' e 'pams'... Se o problema era um desequilíbrio químico no cérebro, bastava equilibrar as doses. Para isso, a cada semana tentava novas combinações de benzos e inibidores de serotonina, que pelo menos ajudaram-no a se manter vivo. Produtividade, amizades e amores viraram memórias esfumaçadas de uma vida pregressa. O dia a dia agora resumia-se a dropar drogas legais, comer e assistir a vida passar pela TV, tudo bancado com a herança deixada pelos pais. Entre um beirute e uma pizza, muito álcool, comprimidos e pensamentos suicidas, numa gordurosa gangorra de sensações e sentimentos. Gangorra de estrutura reforçada, diga-se, pois nosso herói ganhara nada menos que 25kg no último ano.
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Sessão psicodélica
Short StoryDepressivo, ansioso, desempregado e solitário: Paulo é a sombra do que foi um dia. Numa noite iluminada, decide trocar os medicamentos tarja preta por um saco de cogumelos mágicos e acaba conhecendo Clotilde, uma senhora idosa que surge em sua vida...