Larray estava voltando para sua casa de carro. Acabara de deixar seu filho na escola e sua esposa deveria estar se produzindo em algum salão de beleza na cidade. Tudo para ser um dia bom, mas o que Larray viu no caminho de volta para casa fez tudo ficar “sobrenaturalmente” melhor.
Pessoas corriam felizes com seus trajes esportivos, os gramados nos jardins das casas. Garotos pedalavam com responsabilidade nas ciclovias. Nenhum semáforo poderia atrasar seu percurso já que até sua casa não haveria nenhum. Também ninguém quis atravessar enquanto ele passava pelas faixas de pedestres. Ele fez uma curva à direita e, entrando na Rua Bart. já conseguia ver sua casa próxima ao fim da rua. Na rádio que ele escutava(onde só se ouvia músicas antigas) tocava Sweet Caroline.
Ele se sentia tão feliz naquela sua nova vida que nem parecia se lembrar o quanto havia sofrido no passado, mas a duzentos metros de sua casa o passado surgiu abruptamente no seu caminho. Parada no meio da pista, desorientada e sem noção do perigo de estar a poucos segundos de ser atropelada.
“Hands, touchin hands…”
Larray reconhecera a mulher, por milésimos encarara completamente inerte e com seu pé ainda acelerando. Mas como era possível? Ele freou com toda sua força, mesmo sabendo que já era tarde. Provavelmente a moça no meio fio morreria…
de novo!
“…touching me, touchin you…”
SKRRRRR.
O som estridente do freio cortou a paz quase angelical da rua. Larray, por causa de sua freada abrupta, bateu com a cabeça no banco do carro e seguida no volante. Sentiu a umidez quente em seu nariz mesmo desorientado, não só com a batida, mas tudo se tornou uma confusão.
Primeiro, Alexa, sua ex-namorada estava sendo atropelada, causando um baque enorme batendo no para-brisa, formando uma teia de ramificações na placa de vidro quebrada. Depois as batidas. Enfim, ao passo que tentava retomar a consciência olhou para frente. O vidro quebrado o impossibilitava de ver como estava a vítima do atropelo. De repente, seu airbag acionou(seu mecânica o já o alertara sobre a qualidade vagabunda do airbag) dificultando sua saída do carro. Tateou em busca da maçaneta com seu rosto envolvido na almofada de ar amarela, sua outra mão tentando desvencilhá-lo da situação. A maçaneta se abriu e ele projetou seu corpo para fora do carro, caindo em cima de seu braço esquerdo de uma maneira desengonçada.
“SWEET CAROLINE, GOOD TIMES NEVER SEEMED SO GOOD…”
Deitado no asfalto, a estrada parecia uma parede que se prolongava até o horizonte, este inteiramente distorcido. E em nenhum lugar da parede cinza quase infinita estava Alexa.
Larray se recompôs e se levantou. Não havia nenhum vizinho saindo de suas casas para ver o acidente, na verdade alguns espreitavam pelas janelas, com suas faces parcialmente escondidas por cortinas. Larray os viu, mas ignorou todos e cambaleou para a frente de seu carro, curioso com o desaparecimento de Alexa. Apoiou-se no capô, quase se deitando na parte frontal do carro, e se lembrou que estava sangrando somente quando o líquido vermelho escorreu por seu capô totalmente intacto, assim como o para-brisa.
Nada foi real?
O som continuava na rádio de seu carro, o airbag permanecia acionado e seu nariz se mantinha sangrando, e naquela hora ele começou a sentir a dor no nariz.
“Temos que conversar, Larryzinho.”
“Onde você está, Alexa?”
“Por enquanto, só na sua mente.”
“A que custo? Por que você aceitou essa merda, a gente sabe como isso termina, o preço sempre é alto demais. As pessoas só dizem que dariam tudo para rever seus entes queridos porque não conhecem a dívida. E com certeza não é você que irá pagá-la.”
“Vá para a praça, amor. Você sabe onde eu vou estar, quem sabe possamos nos conhecer de novo, voltarmos ao dia em que nos conhecemos.”
— Larray, você bebeu? Caramba! — exclamou a voz extremamente doce — levando em consideração a altura e porte físico — do vizinho.
Leonard fora o único na vizinhança que recebeu bem Larray e sua família. O bairro era quase inteiramente perfeito, e, na visão de Larray, Leonard era um dos que contribuiam para isso.
Larray se afastou de seu carro e ficou de pé. A seu vizinho disse apenas que iria guardar o carro e ir para a praça.* * *
—— O número para o qual você ligou não atende no momento, permaneça na linha para deixar seu recado na caixa postal após o “bip” —— disse pela sétima vez a voz metalizada do celular.
Larray já havia deixado cinco recados para seu irmão, então simplesmente desligou a chamada, guardou seu celular no bolso e observou a fonte da praça central do bairro, que nem tinha um nome. Foi inevitável se lembrar de quando conhecera Alexa. Naquela época devia pesar uns vinte e cinco quilos a menos, apesar de ter mais massa muscular. Sempre deixava seu cabelo curtíssimo, quase raspado, depois de ter um filho que resolvera deixá-lo crescer(isso não significava que seu cabelo realmente iria crescer); tinha uma costeleta irada, rosto liso, sobrancelhas grossas e dentes um pouco amarelados.
Certo dia, em sua cidade natal, depois de ter jogado uma moeda na fonte, ele se sentou no banco e observou como aquilo era um epicentro de esperança, ele conseguia sentir. Ele era muito “sensitivo”, como gostava de se descrever. Teve sensações horríveis no dia em que seu pai e sua mãe morreram. Os sentiu no cemitério, ouviu um:”siga em frente!” de sua mãe, apesar de nunca ter contado isso nem a seu irmão. Isso o fez se tornar um fascinado pelo sobrenatural, que era tomado como verdade para ele. O jovem Larray considerava sua sensibilidade um poder, e não via a hora de usá-lo. Logo se percebia que ele era um baita crente, mas ele com certeza não acreditava em fontes dos desejos… pelo menos não ao ponto de dar mais de 25 centavos para ter um desejo realizado. Depois de duas horas, o desejo de rever seus pais não havia sido realizado(quem sabe no futuro de jovem Larray ainda pudesse se realizar), mas a fonte não o deixou de mãos à banana…
“Chega de relembrar o passado, eu tenho uma nova vida agora, longe do sobrenatural.”
“Eu sou sobrenatural pra você?”
“A Alexa, minha ex-namorada que morreu há dez anos, não é…”
“Eu sou ela! Sou supernatural…”
“Mas o que trouxe você de volta não é, e você sabe bem disso, você conhece as regras do sobrenatural…”
“BLÁ BLÁ BLÁ BLÁ BLÁ! Será que nem mesmo eu consigo te deixar de boca fechada?”
“Você já conseguiu me deixar sem palavras na rua, mas agora estamos na minha mente, e nem um ser humano consegue parar de pensar.”
“EU…”
“Escuta aqui, Alexa, você não devia ter concordado com essa merda, devia estar descansando, aproveitando sua vida pós-morte ou tanto faz…”
“MAS…”
“POR FAVOR, ME DIGA: foi meu irmão que trouxe você de volta? E por que você quis voltar?”
“Esse é o problema, eu não tive escolha.”
A vida continuava acontecendo ao redor de Larray. Todos pareciam muito felizes naquele bairro, onde tudo era tranquilo e pacífico, por isso, ninguém jogava moedas naquela fonte, desesperados por um futuro melhor. Nada os unia, e ninguém reparou o quão assombrado ele ficou ao ouvir que Alexa não escolheu voltar. Ele se curvou no banco, olhando o chão sem sequer focar no que estava vendo.
“Você não respondeu à primeira pergunta, disse para Alexa em sua mente.”
“Isso me faz lembrar de quando nos conhecemos. Eu parei meu carro atrás de você e te chamei pra dar uma volta.”
“Isso não responde minha pergunta.”
“Mas o que vou falar agora talvez responda. Eu sei quem e o que me trouxe de volta, mas não vou dizer uma palavra até você aceitar sair comigo em um encontro, recriar a primeira vez que saímos,”
Você nem sequer… está viva! —— Exclamou Larray em voz alta. Algumas pessoas caminhando na praça conseguiram ouvir a última parte.
“Então como estou falando com você? Larryzinho, por anos você sonhou com a chance de poder trazê-los de volta, sonhou com isso, depositou sua fé nisso, tentou de tudo para tornar seus sonhos reais.”
“Esse era o antigo Larray, o que não sabia que o sobrenatural não transformava os sonhos em realidade, e sim os pesadelos.”
“Apenas olhe para frente, e então redescubra o que é a realidade.”
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Artefato
HorrorLarray passou a maior parte de sua vida envolvido com o sobrenatural e buscando uma forma de rever seus pais que morreram. Depois de perder sua namorada, ele abandona essa vida, se casa e tem um filho. Certo dia, voltando para casa, sua ex-namorada...