O fim de tudo

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O nome do paciente zero foi Song, 28, o primeiro a morrer devido ao vírus que se disseminou na Coreia do Sul. A Praga demorou poucos meses para dominar a Ásia e o leste Europeu. Aconteceu assim: as medidas combativas demoraram para se articularem na maioria dos países. Itália e China foram uma das poucas exceções, provavelmente pelo trauma deixado pela irmã mais velha da doença, no século passado. No decorrer daquele século as epidemias foram ganhando força, até que a Praga finalmente nasceu. Cada epidemia precedente foi um chute contra o ventre da humanidade, como de um bebê se contorcendo no útero antes de ver a luz. Quando a Coreia do Sul confirmou a primeira província em estado de surto, a China imediatamente fechou as suas fronteiras internacionais. Servindo de modelo aos filhos como uma mãe, pois diversos países seguiram seu exemplo. Se a China, berço de uma das maiores doenças virais, se fechou para o mundo, qual o motivo de não fazerem o mesmo? A Europa foi retardatária no processo, mesmo com as oposições fortíssimas da Itália à permanência da abertura.  Até que a Itália quebrou as indicações de seu bloco e declarou o fechamento de suas fronteiras. A epidemia aproximava-se pelo oriente médio, e negar até que a verdade se tornasse mentira, parecia ser a intenção do bloco europeu, que temia uma recessão econômica maior do que a ocorrida no século pandêmico passado. Mas a Praga era diferente, e o negacionismo europeu não seria suficiente para impedir sua expansão.

Por algum motivo, as pessoas estavam inquietas, fora de si. Sob um olhar mais crítico, ou até supersticioso, algo as consumia, mas nessa época não se sabia ao certo o quê. O panorama foi tomando contornos cada vez mais tensos, até que conflitos diplomáticos ao redor do globo começaram a pontilhar o mapa. Na maioria das vezes, relacionavam-se à administração de medicamentos e mantimentos enviados pelas potências globais, principalmente China e EUA. As duas máquinas comerciais trabalhavam em busca dos lucros em cima do "mercado de pandemia", que se construiu no decorrer daquele século. Vacinas, máscaras, medicamentos e serviços de atendimento domiciliar eram fornecidos pelas suas transnacionais, trazendo capital. Nesse contexto de conflitos, um merece destaque. O estopim da Terceira Grande Guerra.

Quando aconteceu a Primeira Guerra, denominaram-na: a guerra para acabar com todas as guerras. Bem, a sua neta foi conhecida por um nome parecido, "A guerra para acabar com todas as coisas".

Desde o início da Praga, a China, com seu mercado de pandemia, se irradiou por rotas que conectavam todo o mundo. A Novíssima Rota da Seda.

A problemática começou em um xeque diplomático articulado pela Grécia e a Bulgária, que invadiram a fronteira com a Turquia. A dupla ameaçou invadir o estado turco, sob o pretexto de ele estar retendo fluxos de mantimentos que deveriam entrar na Europa. A Turquia negou tais ações. Afirmou, também, que o desvio de mercadorias seria por ações de entidades criminosas que cresciam globalmente, em paralelo ao mercado de pandemia. A dupla europeia pediu pelos registros de exportação da Turquia, que devolveu o pedido com outro. Exigiu, então, a divulgação das cartas de importação da díade. Impôs a condição de que somente mostraria seus dados, se ambas também mostrassem os seus. Chegava-se a um impasse.

Na teatralidade diplomática que antecede as grandes guerras, o impasse é o primeiro ato. Começava, então, os ensaios da última peça do homem.

A verdade é que os três países agiam através de milícias, em busca de satisfazer as necessidades da população e de lucrar sobre o fluxo de produtos. Até mesmo Grécia e Bulgária roubavam uma da outra, mas preferiam relevar os acontecidos em nome de uma coalisão contra a Turquia, não pertencente a União Europeia. Como em qualquer País, as tensões diplomáticas refletiram sobre o povo, que tomou as dores do conflito. Literalmente. De início, aconteciam as discussões em redes sociais. Depois, vieram as agressões físicas, produto das discussões fervorosas em bares. O tema fervilhava nas ruas, até que o estopim aconteceu. Um estudante turco, descendente de imigrantes búlgaros, promoveu a tentativa de atentado ao pavilhão policial acusado de ser sede da milícia. Ainda sem provas efetivas. Mas, por mau manuseio, a bomba explodiu acidentalmente na madrugada do ato, matando alguns agentes plantonistas e o próprio garoto. O ponto é que, no outro dia, em meio aos escombros, foram encontrados dois corpos que não deveriam estar presentes. O primeiro de um dos principais representantes da Meclis, o parlamento turco, e de contato próximo do Chefe de Estado. O segundo era líder de umas das principais facções criminosas turcas. O segundo foi o principal problema. O que eles faziam naquela madrugada foi uma incógnita deduzida rapidamente pelos jornais internacionais: coordenavam as ações miliciosas de furtos de suprimentos. O elo entre o governo e as milícias estava formado. O azar turco virou protesto nas ruas dos países e o cenário de guerra estava montado, todas as armas apontadas para a Turquia, que se negava a assumir a culpa de algo praticado pelas três nações.

À essa altura, já se sabia, ou quase, o que estranhamente consumia a mente e o corpo da humanidade. Raiva e seus sinônimos. Os sangues borbulhavam em um ódio indecifrável, que cegava todos da luz da razão. No olhar conspiracionista, talvez algo na água ou na comida, ou até nos suprimentos irradiados pelas potências. China ou EUA seria o culpado, dependendo do seu posicionamento político. No olhar da superstição ou da fé, dependendo da sua religião ou da falta dela, seria a loucura da chegada do apocalipse. Demônios, maus espíritos, entidades malignas, deuses enfurecidos e animais invisíveis extraterrestres comedores de mentes recebiam a culpa nas mais diversas crenças ao redor do mundo.

A partir daí, da loucura, vieram os movimentos dos gigantes internacionais. Enquanto o Conselho de Segurança da ONU não chegava a um veredito, a China exigiu a retirada dos países europeus das fronteiras de seu aliado econômico, a Turquia. A União Europeia se posicionou a proteger Grécia e Bulgária. Logo após, vieram os EUA, declarando apoio à Europa. O impasse da ONU foi quebrado pelos seus próprios membros. A diplomacia se cansou e a Guerra nasceu. O terceiro ato da peça.

Naqueles últimos meses, o planeta inteiro sentia o ódio que martelava seu peito. Uma vontade inexplicável e insaciável de violência. Não havia um ser com a mente em pleno funcionamento. O conflito se estendia dos campos às cidades. Foram cenas comuns, durante a guerra, civis compatriotas brigarem sem motivos aparentes. Um insulto ou uma discórdia qualquer eram o bastante para facadas e socos serem trocados nas ruas entre vizinhos e amigos. Simples como assoprar uma formiga da mesa ou provocar um tigre. Promover o puro caos.

O relógio do apocalipse badalou meia noite quando a mão americana escorregou sobre o botão vermelho. As armas nucleares encerraram a peça em um show de fogo e radiação, sendo atiradas sem pudor por ambas coalisões militares. O resultado foi a última diáspora humana, um movimento dos sobreviventes do ódio e do terror atômico em busca de cidades que não tivessem sido afetadas pela radiação. Ainda. A aglomeração nas poucas cidades que sobreviveram, em um arquejo de vida, aumentou a proliferação de doenças. A demanda por mantimentos era impossível de ser suprida, então, o Tratado de Proteção às Vidas foi firmado. O acordo de paz hipócrita ganhou tempo para o homem, que escapou das mãos da Morte.

A humanidade beirava extinção. As ruas das cidades menos impactadas eram empestadas por uma aglomeração suja, esfomeada e doente. Os esgotos a céu aberto eram os rios que saciavam os sobreviventes, dali filtravam primitivamente o máximo que conseguiam. A comida também vinha dali, ratos, a principal fonte de alimento. Não importava para onde olhasse, o que se via era a Fome.

Foi nesse cenário que pedaços de terra e areia começaram a subir e pairar no ar. Primeiro, apenas uma nuvem de poeira, nada fora do cotidiano das cidades imundas, mas que continuou por dias. Depois, vieram as pedras menores, flutuando como flocos de neve.

John acordou engasgado com terra.

Abdala bateu a cabeça num bloco flutuante de asfalto.

Nikolai viu parte de seu quintal indo embora.

Até que, um dia, ouviram que parte da Floresta Amazônica, do tamanho de um estado, simplesmente ascendeu ao céu. Em um primeiro instante, pensaram ser mais uma arma militar em desenvolvimento e que o acordo de paz havia acabado, mas não se tratava disso.

Aquele era apenas o começo depois do fim de tudo.

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⏰ Última atualização: Mar 09, 2021 ⏰

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