1 - Apenas um homem comum

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Entregue aos devaneios de janela, daqueles que somente quem pega ônibus diariamente pode desfrutar, Vilmar questionava, como de costume, sobre sua vontade de voltar para casa. Trabalhava de segunda à sexta-feira num emprego que odiava, e como um bom trabalhador normal, ele deveria ficar feliz por voltar para casa ao término do expediente. Mas voltar para casa implicaria em encontrar sua esposa e filha; e mais uma visita. Ele era o exemplo perfeito de um cidadão que não possuía o respeito de ninguém, nem dentro de casa, nem na empresa a qual dedicara muitos anos de sua vida. Na verdade, não era um exemplo de ser humano respeitável. Se tivesse a opção de ficar vagando dentro do ônibus para todo sempre, seria uma opção bem-vinda.

— Boa noite! — disse ele cruzando a porta de casa.

— Boa... — se limitou a responder distraidamente a mulher no sofá.

— Uhum — ouviu da adolescente sentada na mesa, mexendo no celular.

— Boa noite, Wagnéria! — Vilmar tentou arrancar mais alguma coisa da esposa.

— Já respondi, é surdo? — rosnou a mesma mulher no sofá ainda sem olhar diretamente para o marido.

— Boa noite, filha! — Vilmar frisou a última palavra.

— Uhum — respondeu outra vez.

— Boa noite, Morte, cheguei.

— Boa noite, veio mais tarde hoje — respondeu Morte aparecendo da porta do banheiro escovando os dentes. — Só eu estou feliz em vê-lo? Ninguém aqui questionou se ele voltaria para casa hoje?

— O que poderia acontecer de pior com ele se você ficou aqui o dia inteiro? — perguntou a adolescente.

— Eu posso estar em muitos lugares ao mesmo tempo.

— Mas você é a morte DELE.

— Sua filha é um saco — reclamou Morte.

— É adolescente — respondeu Vilmar largando a pasta vazia sobre o pequeno armário ao lado da porta.

— Saco é você, fica na casa dos outros uma semana incomodando — completou a adolescente encarando Morte.

— Vou ficar feliz quando chegar sua vez — comentou Morte com um sorriso malicioso.

— Por uma única vez, antes de morrer, se possível, gostaria de chegar em casa sem ouvir discussões — reclamou Vilmar.

— Farei o possível de minha parte — respondeu Morte limpando a pasta de dente da boca com o braço.

— Mas que você já está há muito tempo por aqui, é verdade. Uma semana e eu não morri ainda.

— Ei, vocês dois, deixem a visita em paz! — ordenou Wagnéria do sofá, cortando as unhas dos pés. — Pode ficar o tempo que quiser aqui, é para uma boa causa, afinal.

— Ou seja, me levar! Querida, estou aqui e estou ouvindo.

— Deixa de ser egoísta, homem! Você morrendo a gente ganha a porcaria do seu seguro de vida.

— Viu só, pirralha, todo mundo sai ganhando — completou Morte para a adolescente.

— O seguro não é tanto, não dá nem para comprar uma casa nova, e eu ainda me sinto bem — Vilmar se apalpou. — Viram só? Saudável! — ele jogou o corpo na poltrona marrom ao lado do sofá.

— Você não vai morrer de doença, fique tranquilo — respondeu Morte. — Mas não fique se gabando de boa saúde, senão te dou um câncer.

— Vou morrer do quê, então?

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⏰ Última atualização: Mar 06, 2021 ⏰

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