Acidente

216 19 12
                                    




O fantástico é realmente surpreendente, você não acha? Eu acho. São tantas coisas na minha cabeça que algumas vezes eu fico um pouco perdida. Minha avó diria que estou em devaneio — e estou mesmo (acredito eu). Minha mãe nem imagina que eu fico sentada aqui, no meio dessa floresta, conversando com cada esquilo que passa bem em frente aos meus olhos. Tudo bem que eu não sou o maior exemplo de pessoa que não conversa com qualquer um, porque definitivamente eu falo com todas as pessoas, mas conversar com os animais é um pouco esquisito, não?

Algumas vezes Jimmy me chama de louca, mas qual mal existe em falar com os esquilos, as flores, as borboletas e as abelhas? Não vejo problema algum. O único equívoco que vejo, em tudo, é estar cuidando de um urso.

Há mais de quinze dias eu venho até o meio dessa floresta para cuidar dele e trazer comida. Eu ainda não sei como meus pais não perceberam que as frutas e os pães andam desaparecendo mais rapidamente, mas eu já tenho um álibi: vou dizer que estou doando para pessoas que estão pedindo comida na rua. Eu sei que eles nunca recusariam, essa é a verdade. O problema é que muita comida anda sumindo e eu não sei até quando vou conseguir fazer isso.

Se meu pai soubesse que estou aqui sentada com esse animal tão fofinho bem ao meu lado, ele me deixaria de castigo até completar dezoito anos. Um dia desses contei para minha avó sobre essa situação e ela acreditou ser alguma invenção da minha cabeça. Tenho absoluta certeza de que tudo isso não soaria tão estranho se eu não conseguisse entender exatamente o que esse urso me fala.

— Ei, volte aqui, devolva meu chapéu!

Algumas vezes ele se comporta de forma extremamente irritante e na maioria das situações parece me ignorar, mas a verdade é que ele de fato compreende e eu sinto o que ele quer me dizer isso ou explicar. Isso tudo parece algo de contos de fadas, não parece? Eu não sei exatamente o que se parece, mas o fato dele falar comigo não parece absurdo? Não parece surreal? Eu quase sempre fico rindo disso, porque não sei como vai ser minha vida assim que descobrirem que falo com um urso.

— Por que você não me deixa colocar uma fita em seu pescoço?

Novamente ele me ignorou. Não esperava nada diferente, essa é a verdade. Talvez ele se canse de tanto me ouvir falar, porque, convenhamos, isso eu faço com bastante perfeição. Não, isso não é falta de modéstia, mas sim uma constatação. Eu realmente falo demais e nesses últimos dias eu tenho conversado bastante com o urso da montanha.

— O que você acha, uhm?

— Uma grande bobagem. — Afirma ele, andando vagarosamente na direção da clareira onde ficava uma única árvore ao centro.

— Ei! Volte aqui!

De novo ele resolveu pegar meu chapéu, mas agora começou a escalar aquela árvore enorme e eu sinceramente não sei como consegue subir tão rápido. Ele sempre me responde assim quando está incomodado com algo.

— Volte aqui, Benjamin!

— Você sabe que meu nome não é esse.

Por que isso precisa ser assim? Benjamin é muito teimoso, minha mãe diria que ele é uma mula empacada. Não acredito que seja tanto assim, mas ele é bastante veloz somente quando quer, de resto ele não está nada preocupado em sumir e me deixar para trás, enquanto faz alguns questionamentos inteligentes, outros nem tanto. O nome dele é Bob, mas esse nome é muito comum! Como ele é um urso diferente, por causa da mesclagem de cinza e dourado na pelagem, decidimos — a verdade é que foi mais eu do que ele — que ele deveria ter o nome trocado.

— Você vai ficar aí em cima, mesmo?

Eu estou verdadeiramente irritada com ele e vou embora, porque isso é o melhor que posso fazer. Outro dia encontro meu chapéu. Já está ficando tarde e em Big Bear — sim, eu venho passar férias em uma cidade chamada Big Bear Lake — fica frio e escurece muito cedo.

Deixe-me apresentar quem sou, primeiramente, porque você deve estar um pouco confusa ou confuso com tudo isso e o tanto que eu falo acaba trazendo um pouco de confusão para as pessoas. Então, meu nome é Poliana Stewart Pendleton, sou filha de Otto Pendleton e Luísa Stewart. Meu pai trabalha na Apple aqui da Califórnia e minha mãe é atriz da Warner, em Los Angeles, mas está afastada desde que minha irmãzinha Aurora nasceu, há seis meses.

Nós morávamos no Brasil até meus cinco anos, hoje já estou com doze e sou muito feliz aqui em Palo Alto, porque tenho muitos amigos, me divirto bastante e amo viajar. Sempre que podemos, viemos para Big Bear, porque minha mãe odeia as praias daqui da Califórnia e meu pai também não é muito chegado em diversões praianas, por isso temos essa casa aqui — e eu amo ski.

Agora preciso ir para casa, porque Benjamin não quer mais conversar comigo. Sempre que ele sobe até o alto da árvore e fica naquela casa branca, eu não posso mais falar com ele. Queria entender porquê ele se comporta assim, mas ainda temos tempo, pois vamos ficar mais quinze dias por aqui, afinal as aulas só irão retornar no fim do mês e, por incrível que pareça, pela primeira vez em muitos e muitos anos vamos ter nossas férias completas durante um mês.

— Vocês precisarão ser pacientes e aguardar que ela retome os sentidos. O quadro dela é estável e precisamos mantê-la em coma induzido até o momento em que tivermos certeza que o inchaço no cérebro foi reduzido. — Eu e ele ouvimos a explicação de forma paciente. Não era uma tarefa fácil compreender que Poliana estava naquele estado, afinal ela já sabia esquiar tão bem e estava tão acostumada, que jamais podíamos imaginar que ela sofreria uma queda tão feia como aquela.

— Doutor, estamos falando de quanto tempo?

— Estamos aguardando uma resposta vinda dela, enquanto isso iremos realizar estímulos diversos para que tenhamos resultados positivos. Depois disso, tentaremos reverter a situação.

— Podemos ficar aqui com ela? —Questiona Otto, preocupado com o estado em que a filha se encontrava há três dias.

— Por se tratar de uma Unidade de Tratamento Intensivo, ela não poderá ter acompanhantes, mas será necessária a presença de um dos dois aqui, enquanto ela não puder responder. Mais alguma pergunta?

— Não, doutor, obrigado.

— Mantenham-se confiantes, porque ela possui as melhores chances em função da idade. Já atendemos casos semelhantes ao dela, porque muitas pessoas da região frequentam a montanha. Peço que quando decidirem sobre a permanência, comuniquem a enfermeira sobre quem ficará responsável. Se quiserem alternar os cuidados, fiquem livres para decidir. Tenham uma boa tarde.

Me abraçando forte e segurando as lágrimas novamente, ele não se permite chorar, pois não queria se entregar. Era preciso resiliência para suportar o quadro em que nossa filha se encontra. Ademais, estamos juntos na mesma situação e não fazemos ideia de quanto tempo ela permanecerá assim.

— Vá para casa, Aurora precisa de você. Eu cuido dela.

— Otto, não quero que faça tudo sozinho, ela é minha filha também.

Sempre que haviam momentos não muito agradáveis relacionados com a menina, ele insistia em responsabilizar-se sozinho. Era como se não quisesse que eu assumisse nada junto dele, uma vez que ele ainda insistia em se culpar pelo que ocorreu no passado. A verdade é que por mais que eu fale que sou responsável por ela também, como já venho sendo há mais de dez anos, ele relembra de quando Alice morreu em um acidente de carro, durante uma discussão dos dois, onde Poliana estava na cadeirinha do banco de trás e sofreu escoriações por todo o corpo.

Otto foi casado durante cinco anos. O primeiro casamento resultou em processos muito dolorosos para ele. Antes de Poliana, ele teve uma filha chamada Stella, que faleceu em função de uma doença rara, quando ainda era um bebê. Pouco tempo depois, Alice engravidou novamente e eles tiveram Poliana. Porém, naquela época, o casamento não ia bem, porque os dois não conseguiam chegar a um acordo sobre a mudança de país e até hoje ele se culpa por ter realizado aquela ligação para ela. Enquanto ela dirigia, eles discutiram. Apesar de já ter superado, ele tenta fazer o máximo por Poliana e quando isso não acontece, ele tem a péssima tendência de se culpar.

Conheci Poliana quando ela tinha pouco mais três anos, em uma reunião de amigos onde Otto também estava presente. Me encantei por aquela garotinha de franjinha e cabelinho na altura dos ombros, ela era muito simpática, tal qual ainda é. Estava sempre rindo e vez que outra realizava uma rodada de abraços em todos os presentes no encontro. Apesar de parecer bastante sério enquanto conversava com nossos amigos em comum, ele tinha um jeito doce com a filha e mal sabia eu tudo o que ele já havia passado por aquela criança.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Sep 11, 2021 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O Urso da MontanhaOnde histórias criam vida. Descubra agora