para você, de um vislumbre em meio a uma despedida

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Caro amigo,

Neste último contato com a realidade, até com o que resta da minha sanidade e consciência, me encontro escrevendo esta carta com as lembranças de outros mundos que estive. Estou sentado, em uma mesa empoeirada e velha. É estranho, porque não consigo lembrar para quem estou escrevendo. Mas, por favor, saiba que é exatamente para você que estou derramando todas as minhas angústias antes de ir. Mesmo sem lembrar do seu rosto, nome ou de você por inteiro... Eu preciso que alguém saiba que minhas memórias são reais. Pelo menos, para que eu saiba que são.

Estou tão cansado. Este fardo é tão pesado de carregar.

A existência passageira, o futuro da humanidade, os antecessores do Titã de Ataque em minha cabeça martelando todos esses anos, as centenas de mortes causadas por minha causa. A responsabilidade que minha vida insignificante trazia. Eu não mereço essa vida. O custo da minha liberdade foi alto demais para que eu suportasse. Este foi meu preço.

Caí em um mundo que me fez de atração de horror. Me transformou em um monstro. E, neste mundo, o mundo extraordinário e cruel que nasci, tomei e fui obrigado pelo destino falho a sacrificar o que eu mais desejava. A vida é uma tragédia... a mais magnífica delas. Onde fui o herói e o vilão. Também havia outra figura, que era apenas um garoto sonhador querendo viver o resto de sua vida ao lado das pessoas que amava, explorando o resto daquele mundo desconhecido e tão fascinante.

Irônico, o homem que lutou pela liberdade era tão prisioneiro quanto. Ninguém merece ter um monstro em sua volta. Por isso, no fim, estou me despedindo.

Nestes últimos suspiros, lembrei de um vestígio futuro, uma lembrança longa que deu chamas ao meu gélido coração, meu paraíso e luz antes da morte. Um segundo tão longo que pude ver cada detalhe, cada sensação, cada toque. Um segundo infinito. A vida que passou diante dos meus olhos. Fui o homem mais feliz que sonhei em ser.

Nele, moro em uma cabana fria e acalorada, tem cheiro de casa. Sou acordado por gritos de terror. Meus olhos abrem e levanto assustado. É Mikasa que dorme ao meu lado. Não me surpreendo ao vê-la, é como se eu já esperasse viver minha vida ao lado dela. Como o destino sempre soubesse e eu também. Neste paraíso de outra realidade, somos apenas ex-soldados de guerra traumatizados. De qualquer maneira, é isso que seríamos mesmo que o final não fosse com a minha morte. Seríamos apenas jovens traumatizados, apenas ex-soldados tentando seguir em frente, fingindo que tudo está bem e que ignoram todas as imagens horríveis que já presenciaram no passado. Eu estico o braço e com minhas mãos acaricio suas mechas médias escuras, digo suavemente que era só um pesadelo e que ela não está sozinha. Ela olha para mim, assustada, depois suspira de alívio. Se aninha tão serena e acostumada ao meu peito. Consigo sentir seu coração batendo rapidamente contra o meu corpo. Então, a abraço mais forte enquanto acaricio seus cabelos.

Você está sã e salva.

Sempre apreciamos a vista do nascer do Sol juntos. É um momento silencioso e tranquilo enquanto tomamos café. Mal conseguimos fechar os olhos à noite, pois a escuridão está lá para nos lembrar dos horrores da guerra. Todos aqueles titãs que matamos, os companheiros que vimos serem devorados, as pessoas que matamos à sangue frio. Se não é Mikasa, sou eu que acordo aos prantos. Se não, acordamos com os gritos um do outro. Afinal, quando tivemos um tempo de paz para refletir e digerir toda a tragédia que vivemos por todos esses anos? Sempre éramos acordados por bombas, titãs, toques de amigos nos dizendo que o descanso já havia acabado. Até mesmo quando nós dois fomos presos, não consigo lembrar de um momento silencioso em minha mente, Mikasa até emagreceu de tão ansiosa e preocupada. A ironia bate em nossa porta e lembra que... até em finais felizes há sequelas do passado.

Sãos e Salvos | EremikaOnde histórias criam vida. Descubra agora