Conto 1

40 0 0
                                    

Sorrisos embaixo de máscaras, muitas delas feitas de forma caseira, artesanal, com estampas variadas como forma de mostrar o quanto, em situações iguais, somos diferentes. Sorrisos escondidos, amarelos ou não, agora não faz diferença. Somos mais olhares. Nunca tivemos tanto olho no olho e vozes impostas permitindo que nos escutem.

Os movimentos de aglomeração, de união, de contato e a descoberta de novos cheiros e ambientes não faz parte desse tempo. Somos reféns de um ocorrido global que atingiu a todos, humanos, sem distinção de cor, de idade, de gênero. Coragem não é um fator determinante para vencer esse inimigo pois os "medrosos" são os que estão mais protegidos.

Estou cansado de me isolar. A mesma paisagem, os mesmos quadros e essa rotina dentro das paredes do meu apartamento. Nas poucas vezes que saí, não gostei do descaso que encontrei. Para muitos nem parece que estão vivendo no meio de uma pandemia mundial. Estão certos eles ou eu? Que o tempo possa me responder e que a perda não se aproxime para me dar uma resposta.

Quase que enlouquecendo, preciso tomar um ar. Sozinho mesmo. Sem problemas. Irei me enganar por alguns minutos de que nada está acontecendo. Sentar em uma praça, um espaço aberto sem que outros estejam por perto. Pensar que alguém está para chegar, mesmo que seja uma mentira programada.

Máscara posta, desço pelas escadas. Não confio sequer no ar fechado presente no elevador. Nóia, talvez. Não sorrir para o porteiro não foi uma escolha. Nas primeiras vezes sorria e timidamente dava bom dia, no entanto não recebia resposta. Levei um tempo para perceber que ele não via mais meu sorriso e que minha voz sequer vencia o abafar da máscara.

Já na calçada em direção ao parque do bairro, por vezes me vejo ziguezagueando no intuito de passar o mais longe possível da possibilidade de contato

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Já na calçada em direção ao parque do bairro, por vezes me vejo ziguezagueando no intuito de passar o mais longe possível da possibilidade de contato. Olhar para baixo e passo apressado, não vejo a hora de chegar ao meu objetivo e poder tirar a máscara para apreciar um bom ar fresco.

Perfeito! Ninguém. Nada. Nothing. Niente. Um grande banco só pra mim, sob a sombra de uma linda árvore. Aprecio o ambiente, inspiro fundo. Por vezes fecho meus olhos para aprimorar a escuta dos pássaros, do vento, folhas a balançar. Por que chegamos nessa situação? Como foram deixar isso acontecer? O que será das famílias destruídas pela falta de um ou mais que partiram em agonia? E assim alguns minutos se passam.

Perdido em meus pensamentos, ouço uma voz sem conseguir identificar o que foi dito. Imediatamente abro os olhos e em um susto vejo, no outro lado do banco, uma mulher sentando-se, pronta para colocar sua sacola grudada ao seu corpo. Irritado e ainda assustado, puxo minha máscara do bolso, nutrido de pensamentos de indignação devido aquela aproximação.

— Desculpe se o assustei! - disse a estranha meio sem jeito e com um sorriso no olhar. — Você não acha que o dia está maravilhoso?

Respondi com um aceno de cabeça. Não queria ser rude, mas minha vontade era sair correndo dali, procurar outro banco. Meu objetivo não era falar com outro ser humano. Mas antes que eu pudesse levantar, ela continuou a conversa:

— Você mora aqui perto? Nunca o vi pelas redondezas.

— Sim, moro. - respondi secamente voltando o olhar para o outro lado. Talvez ela perceba meu desconforto e siga seu caminho.

— Adoro esse parque! - voltou a tagarelar.. — Moro nesse bairro desde que nasci. Meu pai me trazia aqui todas as manhãs de domingo para brincar. Foi onde aprendi a andar de bicicleta e onde fiz minha primeira amizade que infelizmente perdi há dois meses para essa pandemia.

A menção à pandemia e a perda de uma pessoa querida me fez voltar os olhos novamente em sua direção. Trazido pelo sentimento de empatia, parei de vê-la como um desconforto. Vi uma mulher de meia idade, com roupas extravagantes, coloridas, porém de bom gosto. Percebi sua máscara estampando uma boca sorrindo, algo meio impróprio para uma mulher de sua idade, ao mesmo tempo em que constatei que dizia muito sobre sua personalidade aparentemente expansiva e desinibida. Sem dúvida, parecia não estar se importando com o que os outros pensariam a respeito de sua aparência.

— Você perdeu alguém para o covid?

A pergunta da estranha me tirou de meu diagnóstico sobre sua figura, mas não consegui responder. Estava atordoado com meus pensamentos e com a atitude dessa mulher.

— Não! - respondi de forma seca, no entanto senti que ela ansiava por um discurso menos monossilábico de minha parte. Contrariado continuei:

— Todos os familiares e amigos próximos estão saudáveis. O que estou perdendo é minha sanidade - respondo com um leve sorriso difícil de ser notado.

— Ah que maravilha! Fico muito feliz quando ouço isso. Minha amiga não teve essa sorte. Ela já tinha algumas complicações e não resistiu. Ficou 30 dias na UTI e, mesmo com toda dedicação médica, não foi possível salvá-la. Foi uma pena. Ela era uma mulher muito ativa. Sua rotina era dinâmica. Nunca estava parada! Quando não estava trabalhando ou cuidando do filho e do marido, cuidava da mãe, do pai, dos sobrinhos, dos amigos... estava sempre pronta a ajudar. Dizem que os bons morrem jovens. A tirar por minha amiga, parece ser a mais pura verdade.

Fico sem saber como lidar com a situação. Incomodado por não saber o que dizer. No entanto, não parece fazer diferença pois a extravagante estranha que aparecera, precisava muito colocar para fora. E com um sorriso nos olhos ela continuou:

— Não sei qual sua crença, mas onde ela estiver, estará feliz. Muito feliz!

Fiquei pasmo com a tranquilidade que aquela mulher falava da amiga recém falecida! Como pode? Ela deixou um filho, um marido, uma mãe .... e a própria amiga! Acredito que minha estranheza tenha transparecido em meu olhar já que prontamente ela começou a se explicar:

— Não me entenda mal, por favor! Minha amiga teve uma vida plena e feliz e as pessoas a sua volta a amavam verdadeiramente. Todos estamos com saudades, claro! Mas em celebração a tudo que ela viveu e a alegria que ela espalhava por onde passava, fizemos um pacto: lembraríamos sempre de momentos felizes e nunca lamentaríamos sua ausência já que tudo o que ela fez por todos nós, tem gente que não faz nem vivendo 10 vidas! Ela merece nossa alegria e nosso amor! Você não acha?

Vagando em meus pensamentos, refletindo rapidamente pelo desapego da dor de ter perdido uma amiga, sou pego de supetão com aquela pergunta. Ela queria saber minha opinião sobre um assunto que eu pouco entendia: a perda de um alguém.

— Sim, sem dúvida. É possível que, onde quer que ela esteja, o melhor é poder ver vocês felizes.

— Bem, tenho que ir. Passei aqui só para dar uma esticada nas pernas. Fique bem, simpático estranho! - disse ela enquanto recolhe sua bolsa e levanta-se do banco.

Por um átimo de segundo, penso: Já? Surpreendido por ter gostado da conversa. Logo eu que havia ficado tão irritado com sua chegada.

— Ok. Fique bem e cuide-se! - respondo enquanto se afasta em um caminhar tranquilo.

Agora estou eu aqui, sozinho novamente com meus pensamentos temperados pelo ensinamento da estranha extravagante que sequer deixou seu nome. No entanto, deixou muito para refletir: desapego, felicidade e seguir em frente com positividade.

------------------------------------------------------

FIM

------------------------------------------------------

Quer aprender a escrever e contar suas próprias histórias?
Venha fazer o curso de Introdução ao Storytelling comigo e dê um passo importante na sua carreira como escritor. Estou te esperando!

🔥 https://fabiofeminella.hotmart.host/introducao-storytelling



Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jan 01 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Conversas com uma tal de vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora