first // mother knows best

1.4K 133 8
                                    

“Pode deixar que eu levo tudo pra vocês, senhora Wayne”, o garoto sorri simpático, gesticulando para os móveis da sala. Ele me fita de relance e sinto um leve arrepio com suas orbes azuladas sobre minha figura, desviando o olhar para o chão envergonhado. Ouço sua voz grossa tornar, em alto e bom som: “só vou precisar levar tudo à tarde, lá pelas duas no mínimo, porque depois não vou estar disponível.”

“Sem problemas, meu filho pode ir com você para abrir a casa, quem sabe pode até ajudá-lo.” Minha mãe responde prontamente, o que me faz olhá-la um pouco surpreso com aquela nova informação.

O rapaz apenas assente e me oferece o mesmo sorriso simpático que ainda pairava em seu rosto, o qual não vi outra alternativa a não ser retribuir timidamente. “Fechado, então!”

Por mais que odiasse o mero prospecto de me mudar, sobretudo sob circunstâncias tão humilhantes como a falência das empresas Wayne, tinha de admitir que simplesmente amava o processo de organizar nossos pertences para a mudança. Receio que realizar a relocação dos móveis, porém, não era meu forte. Gostaria de ficar com a parte mais maleável e portátil da situação se possível, com o frete sendo executado por alguma pessoa que nenhum de nós conhecia pessoalmente. Então quando minha mãe envolveu-me ativamente naquela tarefa um tanto custosa, sem me consultar antes, digamos que foi um pequeno baque em meus planos.

O problema não era a mudança em si, mas sim a necessidade inevitável de socializar com o rapaz do frete. Clark era seu nome, se não me falha a memória; Clark Kent. Ele deveria ter no máximo uns vinte anos e era alto, porte atlético, como qualquer menino do interior que se preze. Seus cabelos eram lisos e escuros, ralos, penteados para o lado. Havia uma corrente de prata em seu pescoço sempre que o víamos. No corpo estava a mesma camiseta xadrez, surrada e manchada, e uma calça jeans de maneira semelhante. Em seus pés um sapato preto visivelmente antigo, no pulso um relógio de ponteiro prateado que subia e descia por seu braço conforme ele gesticulava e andava.

Clark era simpático o suficiente. Não era sua educação que me preocupava, mas justamente isto: sua áurea sociável e prestativa. Ele mesmo havia se oferecido para fazer o frete da nossa mudança, enquanto estava na plantação em frente à nossa nova casa. Kent conversava com um amigo quando nos viu — meu pai e eu, notoriamente — quase morrendo ao subir e descer as escadas do terraço com caixas e mais caixas nas mãos. Ora, logo um moço tão desavergonhado como ele nunca iria desistir de puxar assunto comigo mesmo diante das minhas respostas monossilábicas.

Dito e feito.

“Vocês moravam em Metropolis, não é?”, veio a primeira questão, enquanto Clark ligava sua caminhonete e dava partida.

“Gotham”, forcei um sorriso, virando o rosto para fitar minha janela. Tive que sentar ao seu lado, pois eu era infelizmente educado demais para perguntar se podia ir na caçamba, evitando assim sua presença ao máximo. Viramos uma esquina e quase agradeci aos céus pelas perguntas terem acabado.

Quase.

“Vocês são famosos por lá, não é? Acho que já vi sua família em algum jornal.” Limitei-me a assentir, sequer o olhando. Tive que encará-lo, contudo, quando sua risada grave cortou o silêncio entre nós. “Você não é de falar muito, pelo visto.”

Reprimi um suspiro e meus ombros baixaram instintivamente, como sempre acontecia quando alguém fazia aquela mesma observação. “Perdão, não quis parecer rude”, murmurei baixo, desviando o olhar para a janela novamente.

Kent deu de ombros, dobrando outra esquina. “Sem problemas.”

O resto do caminho foi agonizante, para dizer o mínimo. O remorso me engolia a cada minuto que passava sem a inquisição irritante do rapaz. Tive vontade de revirar os olhos quando Clark desceu do carro sem dizer uma palavra, já desatando as cordas em volta dos móveis na caçamba. Cruzei os braços e assisti à repetição do movimento algumas vezes, enfim me rendendo e soltando um suspiro derrotado. Ele estava passando por mim novamente quando chamei seu nome, fazendo-o me olhar. Senti algo estranho em meu peito quando suas orbes pairaram sobre mim, então respirei fundo.

“Eu não sou muito bom nisso”, gesticulei entre nós, ao que ele franziu o cenho em confusão. Suspirei mais uma vez, fitando o céu azul daquela tarde. “Não sou bom em lidar com pessoas. Sou um pouco tímido. Entendeu?”, lancei-o um olhar suplicante, como se estivesse implorando em silêncio que ele houvesse me entendido.

Quase agradeci aos céus mais uma vez quando Clark assentiu, por fim. “Ah, tudo bem. Eu achei que estava sendo irritante, por isso me calei.”

Você estava sendo um pouco, pensei, mas decidi por apenas abrir um pequeno sorriso em resposta. “Não foi isso, pode ficar tranquilo.” Nós trocamos um olhar demorado e eu pigarreei, apontando para os móveis na caçamba desajeitadamente. “Vamos acabar logo com isso”, ele acenou com a cabeça e fui destrancar a porta, descendo no processo para ajudá-lo com a mudança.

Mamãe e suas ideias.

KANSAS | 𝘴𝘶𝘱𝘦𝘳𝘣𝘢𝘵Onde histórias criam vida. Descubra agora