Ela sempre utilizava o caminho da Praça Central para sua fuga.
— Hiin in in! — Celeste relinchava eufórica.
— Quieta! — A garota sussurrava. Não que estivesse de fato fugindo de algo, mas imaginar-se em fuga tornava seu passeio ainda mais interessante e divertido. Talvez, por ser inoportuno passar por aquelas bandas dadas as circunstâncias tenebrosas quais os aldeões acreditavam ser. Afinal, era um dia importante para eles, e ter uma jovem correndo em disparada pelas ruas demonstrando completa falta de respeito a cultura local, tornava Joanne uma visitante indesejada. E sabendo para aonde ela estava seguindo os deixavam ainda mais incrédulos. A garota, porém, não demonstrava arrependimento e como numa birra de criança, ela fazia total esforço para não deixar de ser notada por eles.
Ignorando os olhares de revolta, e muito orgulhosa por isso, a jovem passava atenta e captando as coisas ao redor, sendo levada pelas patas velozes e fortes da sua égua, uma friesian imponente e graciosa. A cauda vasta e os abundantes pelos cobrindo os cascos lhe davam um ar de força e virilidade, e sua crina longa e ondulada ornando seu pescoço e cobrindo parcialmente a fronte, a enfeitava com toda maestria e postura de uma puro sangue. Sua pelagem negra e sedosa, brilhava reluzente como a lâmina de uma espada de aço ao ser banhada pelo sol. Celeste podia ser gentil e amigável, mas sua força lhe tornava perfeitamente selvagem, e assim Joanne se sentia sob o lombo de sua égua, indomável e livre.
O galope intenso fazia a menina saltar do lombo do animal, subindo e descendo por causa do impacto. Via as enormes gaiolas enferrujadas, penduradas nos telhados envelhecidos das casas como enfeites de natal. Eram compridas e estreitas formando um cilindro capaz de comportar uma pessoa em pé. Nunca entendera o motivo daquelas gaiolas deprimentes ornamentando as casas, aliás não gostava de nada que servisse para aprisionar, e era o que sentia ao ver aqueles objetos defeituosos. Pensava que as casas se tornavam ainda mais tenebrosas e assombrosas quando as gaiolas estavam por perto. Sentia uma leve tristeza desconhecida envenenar seu peito, e logo recordava de sua missão diária desde o início da semana, o que substituía imediatamente o sentimento melancólico para outro mais fervoroso: revolta.
Ao cruzar a Praça como em qualquer dia, a garota podia ver a enorme estátua de madeira que ficava em frente à Catedral. Era algo que sempre assaltava seu olhar, que instigado observava a cena. Uma escultura de madeira arquitetada há muito tempo, envelhecida e gasta pelo sol e pela chuva. Havia rachaduras e manchas na estátua, agora desbotada pela idade, resistindo firme na madeira envelhecida de carvalho negro. Via a cena simbolizada na escultura. Um soldado perfurando o peito nu de uma harpia, que estava de joelhos. No semblante dor e tristeza se projetavam e com as duas mãos rentes aos seios, segurava o arpão que atravessava seu corpo. Rendida, aceitando a derrota iminente, a harpia sustentava nas costas um enorme par de asas que desmaiavam ao chão.
Joanne, com sardas enfeitando a face pálida e com a cor do sol do oeste nos cabelos, tinha seus dezoito anos, e uma alma ardente e selvagem lhe dando o ar necessário para ser considerada rebelde e atrevida para a época em que gastava a vida. A jovem passava rapidamente por entre as ruas da cidade e ao contornar a Praça Central via duas faixas vermelhas e longas estendidas nas paredes largas e altas da Catedral. As faixas despencavam pesadas, pois, na base havia uma estaca grossa e comprida, propositalmente fixada ali evitando que o vento não perturbasse a exibição do que nelas havia estampado: um desenho. Linhas douradas e protuberantes cintilavam ao toque dos primeiros raios de sol que chegavam para dar vida àqueles contornos dourados. Eles davam forma a um emblema formado por um arpão levemente inclinado perfurando um coração e dele saía um par de asas abertas. Juntos, os três elementos simbolizavam a vitória do bem contra o mal, o soldado e a harpia. O divino e o profano, pelo menos era assim que as pessoas do vilarejo cresciam ouvindo do Alto Clero, e era nisso que acreditavam.
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O Grito da Harpia e a Floresta das Bruxas.
RomanceJoanne, uma jovem princesa, cria seu próprio mundo em meio a uma pequena e esquecida vila medieval. Contra as crenças antigas e preconceituosas estipuladas pelo Alto Clero, ela segue suas próprias convicções e visita constantemente a Floresta das Br...