O conceito de Catarse surgiu, na cultura ocidental, na Antiguidade. Em alguns textos gregos, ele aparece com o sentido fundamental de limpeza, purificação, purgação ou depuração. Dentre os filósofos dessa época que escreveram sobre a Catarse, está Aristóteles que, a fim de definir o conceito de tragédia, refere-se à Catarse, para examinar o efeito da tragédia sobre o espectador. (Chisté, 2015)
Eu nunca havia passado muito tempo no leste da Cidade Universitária de Kiona. O Instituto de Ciências da Saúde, onde eu cursava a maior parte de minhas disciplinas, era próximo à Sede e ao refeitório principal. O Instituto de Artes, contudo, ficava quase nos limites da Cidade.
Não podia negar — eram alguns dos prédios mais bonitos que eu já vira no campus. O prédio da Arquitetura era o meu favorito; gigantesco, sóbrio, elegante; as colunas de mármore conferiam ares da Roma Antiga ao edifício. O prédio das Belas-artes, onde as disciplinas de pintura, escultura, dança e teatro eram lecionadas, era quase do mesmo tamanho, mas os arabescos e padrões florais nas balaustradas me faziam pensar em Art Nouveau. O prédio mais moderno era o das Artes Digitais, onde as turmas de fotografia, audiovisual, cinema, design gráfico e comunicação estudavam; era assimétrico, colorido e meio maluco, mas fascinante. O meu favorito, contudo, era o das Artes Musicais; ali, o teatro, a dança e as variadas disciplinas de música disputavam espaço. O prédio em si não era grande, mas era todo feito de madeira, guardava um anfiteatro maravilhoso e um jardim tão bonito quanto o da Arquitetura.
A minha aula de Arte e Catarse seria realizada algumas vezes no prédio das Belas-artes, algumas vezes no das Artes Musicais; e eu sabia somente algumas coisas sobre a turma. Em primeiro lugar, o professor Viggo só aceitava veteranos que estivessem matriculados em Kiona há mais de dois anos. Lecionava para oito alunos por semestre, quase sempre oriundos do Instituto de Artes, mas algumas vezes aceitava alunos do Instituto de Letras e Ciências Humanas. Eu também sabia que Viggo cobrava uma carga abissal de leituras, mas era avesso à provas.
Para mim, era apenas o início do segundo ano e eu não fazia parte de nenhum dos institutos normalmente aceitos. Havia conseguido a vaga por um golpe de sorte — todas as disciplinas optativas livres, que não eram lecionadas no meu instituto, sempre eram difíceis de conseguir; mas eu estava decidida a pegar alguma matéria, uma que eu pudesse traçar alguma linha com a psicologia. Arte e Catarse me chamou a atenção mais pela Catarse do que pela Arte, sobre a qual sabia só um pouco; e era uma das minhas opções menos prováveis. Contudo, após ser rejeitada por todas as outras turmas, tive de apelar ao conselho de bolsas e alegar que iria perder a minha por falta de oportunidades dentro da Universidade. Foi um pouco exagerado, já que haviam outras disciplinas com vagas que apenas não me interessavam, mas funcionou; ninguém olhou a lista e o conselho ficou apreensivo de que eu fizesse alguma declaração na Internet, difamando Kiona. Não sei o que chegou aos ouvidos de Viggo, como o persuadiram; o fato é que, pela primeira vez em sabe-se lá quantos anos, Arte e Catarse tinha uma aluna da Saúde.
Tinha certeza de que ele seria duro comigo. Eu seria uma intrusa.
Nervosa, com o coração palpitando, entrei no prédio das Belas-artes. Chequei o mapa capenga que havia imprimido do site de Kiona e subi as escadas para procurar a sala 6. Viggo havia colocado um pequeno aviso no site, dizendo que a aula daquele dia seria lá.
Com a exceção do próprio professor Viggo, a sala 6 já estava toda ocupada quando cheguei. Os oito alunos estavam espalhados pela sala. Um rapaz e uma garota, os dois vestidos de maneira muito formal — camisa de botão, blazer, sapato oxford —, conversavam próximos a janela. A garota fumava um cigarro, mas ninguém parecia achar inapropriado que ela o fizesse dentro da sala. Uma menina de moletom e chinelos estava sentada nos fundos, com um pé apoiado na cadeira e a cabeça apoiada no joelho; rabiscava algo em um bloquinho de notas. Três garotos estavam sentados no chão, discutindo de maneira eloquente, todos segurando o mesmo livro de capa vermelha; talvez discutissem a respeito dele. Um dos garotos se vestia de maneira perfeitamente comum, mas estava descalço — os outros dois pareciam ter tirado peças coloridas a esmo do guarda-roupa, completamente descombinadas. Havia ainda mais dois rapazes, sentados ao lado um do outro na frente da sala; um deles usava uma túnica marrom e sandálias de couro, o outro usava jeans e camiseta — perfeitamente comum, como o menino descalço — mas estava completamente maquiado, com sombra escura, delineador de gatinho e um brilho nada discreto nos lábios.
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Bruma
Mystery / ThrillerPara ganhar créditos extras, uma estudante de Psicologia conquista vaga em uma disciplina optativa de Arte e Catarse. A turma é restrita, composta quase que unicamente por artistas veteranos e excêntricos. Caída de paraquedas dentro desse novo círcu...