- Capítulo 3 -

156 49 4
                                    

Todos diziam, Deus tomou a voz dessa criança e, em troca, deu-lhe talentos inigualáveis.

O Lander de doze anos, naquela época, não era ainda o monstro insensível e arrogante. Ele era apenas uma criança introvertida e impulsiva, até um pouco infantil.

"Edward, você poderia me ajudar aqui?" Lily passou as mãos em seus cabelos longos cacheados. Estava em cima da cadeira, nas pontas dos pés, enquanto tentava pendurar o enfeite de Visco na parede.

Mas ela era baixinha, suas pequenas pernas sempre a faziam falhar quando estava um ponto de conseguir. Frustrada, ela olhou para o garoto confortavelmente aconchegado no sofá, lendo: "Edward! Não finja que não me ouviu!"

Edward Lander não se incomodou em levantar os olhos, ele não possuía um pingo de consideração fraternal.

"Vou contar ao papai!" Lily, a irmã caçula, abraçou o enfeite de Visco, enquanto lágrimas começavam a se acumular em seus olhos.

Talvez a personalidade de Lander não fosse tão ruim, mas de fato, desde pequeno ele já era uma pessoa fria. Seu talento especial era conseguir ignorar todos os tipos de birras e pedidos de favores. As lágrimas de sua irmã, não importava o quanto, foram incapazes de sensibilizá-lo. O garoto moveu  ligeiramente, o olhar da página do livro e encarou a menina que estava à beira das lágrimas, utilizando uma expressão que aparentava dizer "Se você quiser chorar ou me dedurar, sinta-se livre para fazê-lo ".

"O Papai Noel não lhe dará um único presente, você é uma criança má!" Lily lamentou, rapidamente mudando de uma atitude mimada para um grito estridente.

Tantas criaturas bípedes neste mundo e ainda existe uma que acredita no Papai Noel ... por Deus, onde se encontra o orgulho do animal que anda sobre duas pernas?

Lander tirou dois pedaços de algodão do bolso e os dois em seus ouvidos, bloqueando o som exterior, como tampões.

Foi a última vez em sua vida que o garoto ouviu o som do choro de Lily.

Um grupo de assaltantes, em uma noite pacífica, invadiu a casa dos Lander. O mundinho silencioso do garoto desabou.

Muitos anos depois, Lander descobriu que era apenas um bando de criminosos e assassinos contratados.

Lily foi empurrada contra a parede e espancada como um animal até a morte. Enquanto viva, não havia sequer um momento no qual ela não causasse um alvoroço, contudo, no último instante de sua vida, nem mesmo um único gemido de dor saiu de sua boca.

Sob o sombrio céu londrino, na crescente e feroz batalha anticiência, multidões de trabalhadores desempregados protestavam. Ambientalistas e extremistas religiosos condenavam todos os cientistas, chamando-os de "escória que deveria ir para o inferno".

Havia também os descarados capitalistas que enxergaram uma oportunidade de bom negócio, aproveitaram-se do pensamento de encontrar vantagens no sofrimento dos outros, e usufruir das mudanças para se apropriar da avançada tecnologia daquele tempo.

Assim como Bruno ¹ foi queimado vivo e Copérnico ² preso, toda vez que uma comoção nascia, haveria diversos sacrifícios pelo bem maior.

              ¹ (Giordano Bruno foi condenado por heresia pela Santa Inquisição, uma jurisdição eclesiástica da Igreja Católica, empalado e queimado vivo. Defendia a teoria heliocêntrica.)

           ² (Nicolau Copérnico é o autor da teoria Heliocêntrica, segundo a qual o Sol é o centro do universo, refutando a teoria Geocêntrica defendida pela Igreja Católica na época.)

Contudo, deveriam os sacrifícios desse fluxo temporal serem eles? Não foi Deus quem disse que todos neste mundo são iguais? Não eram todos eles filhos de Deus? A existência deles não deveria beneficiar a vida das pessoas?

O pai de Lander o jogou pela janela do segundo andar, e, antes que se possa virar, foi acertado por um tiro no peito.

O tampão de algodão, que reivindicava a separação de Lander deste mundo, caiu de um lado e ele escutou os gritos de sua mãe ressoarem pela casa, até que tudo chegou ao fim.

A criança que caiu e quebrou a perna, esforçava-se para engatinhar. Suas mãos, ensopadas na água lamacenta do chão coberto de neve, ainda seguravam o livro. Ele tropeçava, implorando a qualquer pessoa que pudesse encontrar, mas desde o momento em que o primeiro disparo foi feito, os transeuntes todos se evadiram, dispersos. A porta da frente da casa vizinha jazia colorida do sangue fresco que escorria dos dedos do garoto. Ninguém abriu a porta para ele.

O coração de Lander encheu-se de ódio. Enquanto ele estava coberto de sangue, ajoelhado na neve congelante, seu coração foi tomado pela cólera, ele odiava tudo, ele odiava todos.

Porque os imbecis que reclamavam que as máquinas tomariam suas oportunidades de emprego simplesmente não morriam?

Que direito essas criaturas, que não possuíam o mínimo de inteligência humana, tinham de permanecer neste mundo e desperdiçar oxigênio e luz solar?

Foi nesse momento que ele escutou a voz de uma mulher dizer: "Meu Deus, uma criança, o que houve? Foi um assalto?".

Ressentimento, frigidez e dor envolviam os nervos terrivelmente entorpecidos de Lander. Atordoado, ele virou a cabeça. Em uma visão turva, pareceu enxergar uma mulher gorda, e então escutou outra voz a qual não se esqueceria até o fim de sua vida.

"Mãe, deixe-me".

Lander, então, foi levantado pelo outro garoto. O ódio em seus olhos ainda não havia se esvaído, entre as lágrimas, ele viu um adolescente de cabelos e olhos pretos. Arno ainda era um adolescente naquela época - ainda que fosse muito magro, possuía uma estrutura corporal de um adulto, os ombros que careciam de músculos, faziam-no parecer um passarinho o qual as asas e penas ainda estavam por nascer.

O casaco de lã do garoto roçava no rosto de Lander, havia também aquela névoa única de Londres, fria e úmida. Ele estava sozinho ali, parecia estar em um mundo feito de barro.

Esperando até que Lander recobrasse os sentidos, ele aponta que, por todo o caminho, contemplara o queixo do garoto.

O jovem de cabelos pretos pretos evitou a perna machucada, como se estivesse lidando com um gatinho selvagem ferido. Lander escutou a mulher gorda reclamar que a vida não era mais a mesma. O garoto não falou muito, desinteressado, apenas escutava sem opinar. Ocasionalmente, parava para ajustar a posição de Lander em seus braços, seus movimentos um tanto quanto gentis.

Seus dedos delgados removiam o cabelo que caía no rosto de Lander. Arno tinha olhos que lembravam uma obsidiana³. Encarando-os, poderia conter toda sujeira e escuridão de Londres.

                  ³(NT-pt/ obsidiana é uma rocha, também chamada de Vídeo Vulcânico, sua cor é preto azulado a cinza e cinza esverdeado)

"É realmente doloroso?" Lander finalmente escutou a voz do garoto e a barragem de ódio construída em seu coração foi derrubada, não dando qualquer oportunidade de defesa, uma inundação varreu toda sua armadura juvenil. Subitamente, ele virou a cabeça e enterrou seu rosto no peito do garoto de cabelos pretos, as lágrimas que não chorara em toda sua vida vieram à tona, manchando o casaco marrom-escuro.

Anos depois, Lander ainda se recordava claramente da sensação daquele tecido. Parecia que, em toda Londres, havia apenas um abraço como esse.

Como o último local de refúgio para sua alma, que nasceu distorcida, cultivada para se tornar vil. 

Assassinate por Priest [pt-br]Onde histórias criam vida. Descubra agora