A carta do Diabo

          Por recomendação da assessora, Betina colocou cinco balas de hortelã na boca. Disfarçar o cheiro da cachaça era essencial para a sessão de autógrafos da coach de relacionamentos. Afinal, ela mesma havia escrito que o passo cinco do Casamento Perfeito era a sobriedade para lidar com os problemas da vida conjugal.

          Sentando-se há alguns metros da fila de fãs, ainda contidos por um segurança, pensou uma série de palavrões. A enxaqueca e a ansiedade estavam em pico, e apesar da necessidade de fumar, precisava controlar-se. Nenhum atraso ou problema podia acontecer naquele dia, na primeira aparição pública depois das recentes polêmicas.

          Para controlar o nervosismo, deslizou o dedo pela tela do celular, navegando pelo twitter. Demorou pouco tempo para perceber que a ideia não era boa. Ainda em quinto lugar no trending topics estava seu nome e a thread com as acusações de machismo que cercavam sua imagem.

          Respirou fundo. A notícia de que uma jovem do fã-clube havia sido assassinada pelo marido com seu livro em mãos piorou o burburinho sobre o conteúdo da obra. As críticas diziam que havia uma pressão excessiva sobre a imagem da mulher, condenando-a constantemente ao pecado e reforçando a necessidade de uma submissão irrestrita ao homem.

          Engoliu em seco, roeu a unha. O medo de perder a fonte de recursos era grande, e o nervosismo aumentava a vontade de consumir pelo menos um cigarro. A ansiedade a levava a bater os pés no chão em uma contagem regressiva para o fim do evento. A embriaguez era a única maneira de suportar a vida.

          Pediu ao segurança que lhe desse apenas mais alguns minutos sozinha, e tentou, naquele tempo, ligar para o marido, que mais uma vez não a atendeu. Respirou fundo. Novamente procurou o próprio nome na internet, e abriu um sorriso amargo, consolando-se. Pelo menos a polêmica ainda era a respeito da mulher morta, e não sobre seu relacionamento falido.

          Desde que ele havia descoberto que ela o traia, o casamento estava por um fio. Ele, enraivecido, viajou sozinho, com a justificativa de promover o livro em outro estado. Ela, divulgando a obra na cidade em que viviam, buscava comportar-se e conter os instintos, já que para um matrimônio feliz o autocontrole era o passo três e o desejo de melhorar, o dois.

          Entre ela e o marido, o amor, que era o item mais importante no livro Casamento Perfeito, havia acabado. O motivo daquela união era uma nova categoria, muito menos nobre: dinheiro. Por isso, a separação seria catastrófica. Como continuariam o programa na televisão, as palestras e os livros sobre felicidade conjugal, se estivessem divorciados?

          O barulho de correria quando liberaram para que os fãs se aproximassem despertou Betina do estado reflexivo. Foi nesse momento que reparou na pessoa parada diante dela, e uma expressão de nojo tomou sua face. Tratava-se de uma mulher terrivelmente destruída, de pele marcada por cicatrizes, enrugada e queimada, tão magra que os ossos demarcavam os contornos do corpo. Tinha apenas alguns poucos tufos de cabelo ressecado na cabeça e olhos profundamente avermelhados.

          Foi por conta daquela imagem catastrófica que a autora demorou a reconhecer Verônica, uma amiga de infância. Haviam crescido e brincado juntas no mesmo condomínio durante anos. Mas apesar de Betina ter morado lá, não eram vizinhas. Verônica era filha da empregada doméstica, que não tinha onde deixar a criança, e por isso a levava para o trabalho. Depois que a mulher foi demitida pela suspeita de roubar comida, a coach nunca mais viu a pequena e magra amiga.

          A vida havia lhes preparado histórias muito distintas. Enquanto Betina, com o apoio dos pais, fez faculdade, desenvolveu uma carreira de sucesso e escreveu livros de autoajuda, Verônica, assim que completou dezoito anos, casou-se. Escolheu um homem bruto, muito mais velho, que logo tratou de afastá-la dos amigos e familiares.