Capítulo 3 - Lua crescente

10 3 0
                                    

Precisei reler os últimos parágrafos várias vezes, pois as lágrimas que escorriam turvaram minha visão. Minha mãe era mais especial que eu supunha e esse segredo poderia mudar toda minha trajetória atual. Um misto de euforia me invadiu, trazendo esperança de voltar a ter paz, de conseguir recuperar o que nos foi tirado e de mostrar àquele homem o valor que tínhamos. Juntamente a essa nova perspectiva, o fato de minha mãe ter morrido enganada e achando que ainda estávamos felizes fez com que o ódio se misturasse novamente a minhas emoções. Não dormi aquela noite folhando o caderno, lendo as receitas, tentando imaginar que tipo de dom eu herdara e ainda relendo a carta que mudou tudo para sempre.

Após algumas investigações, acabei descobrindo que o cretino do meu ex-esposo ficara viúvo havia um mês e que agora se dedicava a cuidar de sua preciosa filha. A fúria tomou conta de mim, mas trouxe com ela o plano perfeito: eu iria recuperar cada centavo que nos foi tirado e os juros seriam calculados de acordo com cada lágrima que derramei lamentando sua falsa morte e sua traição.

Consegui arquitetar um encontro e sua cara de espanto ao depara-se comigo foi o primeiro lampejo de vitória que pude experimentar. Ameacei revelar a verdade a todos, inclusive para sua filha que, com toda certeza, idolatrava o pai. Sem saída, ele aceitou receber-me como nova esposa desde que sua filha nunca ficasse sabendo nada sobre seu passado de mentiras e trapaças. Esse foi meu primeiro passo. Provavelmente ele pensou que em pouco tempo se livraria de nós novamente, mas eu não era mais a mesma.

A beleza e o luxo do lugar pegaram-me de surpresa e a cada passo que eu dava meu ódio crescia e inflamava até minha alma. Uma jovem apareceu saltitando da casa em nossa direção e novamente vi aquele tom de azul em outros olhos, aquela cor rara que um dia me encantou e hoje me provocava náuseas. Era a filha escolhida, não tinha como deixar de notar sua semelhança com o pai. Se apresentou como Ella, mas avisou-me que podíamos chamá-la de Cinderela – apelido carinhoso que seus pais lhe deram.

Nos dias que seguiram, fiz questão de exigir todo conforto antes tirado de nossas filhas. Todavia, nada anulava ou amenizava o fato de vê-lo tratando-as como estranhas, isso só me dava mais certeza dos meus propósitos e de como ele merecia uma punição. Com tudo isso acontecendo, não tinha conseguido ainda nem ter ideia de que tipo de dom eu poderia desenvolver. Decidi observar e descobrir tudo que podia sobre aquelas pessoas com quem iríamos conviver e esperar pelo aniversário de dezoito anos de minha filha mais velha que seria em breve.

Ele tentou jogar seu charme que antes era suficiente para me comprar e iniciou uma história de desculpas que não permiti que passasse das primeiras palavras, afinal, nenhum motivo teria mais importância ou curaria a ferida que passei a carregar desde que descobri tudo. Sua filha era doce e prestativa, mesmo assim, eu não conseguia ter sentimentos bons ou querer ficar mais que alguns minutos em sua presença. Também não obrigava minhas filhas a isso. Após uma semana fazendo parte novamente de "uma família", a garota de olhos encantadores adoeceu e passou a sofrer com uma forte febre. Ri secretamente e imaginei sua morte em meus sonhos com seu pai aos prantos sofrendo por todo dinheiro que acumulou não ser o bastante para salvá-la. Mas o instinto de mãe venceu meu ódio e resolvi usar uma receita do caderno que agora me pertencia. Isso me fez pensar que a mesma também vivia uma mentira e que talvez devesse ficar de fora de minha vingança. Talvez.

Após mais alguns dias, meu ranço e minha ira só aumentaram e surgiu a oportunidade perfeita. Ele teria que viajar a negócios. Eu já havia sido apresentada a sociedade local como nova esposa e seria a herdeira prioritária de tudo. Meu amor não seria restaurado, minhas lembranças doloridas não seriam apagadas, mas melhor sofrer num palacete que lavando roupa suja de pessoas desconhecidas.

Na manhã de sua partida, providenciei o café da manhã e assim que ele se despediu, pedi que me levasse junto até a cidade onde eu havia marcado hora com a modista. Seguimos em silêncio até a entrada do bosque onde ele começou a sentir-se tonto e parou a carruagem para que se recompor. O suor escorria por sua testa, percorria seu rosto e entrava pelo colarinho da camisa. Observei atentamente seus olhos irem perdendo o brilho e quando notei que estava totalmente vulnerável, empurrei-o contra o chão. Sem hesitar e com muita calma, exibi um punhal que trouxe comigo. Mesmo quase inconsciente, notei seu horror diante do iminente. O desespero tomou conta de sua expressão enquanto rasguei seu peito encarando-o e sorrindo ao mesmo tempo. Mesmo percebendo que já estava sem vida, fiz questão de arrancar seu coração e cortá-lo em pedaços, afinal disso eu entendia. Meu coração fora arrancado e despedaçado primeiro.

A sensação de alívio era indescritível! Há muito tempo não sentia algo tão reconfortante e estimulante. Sentia minhas células vibrando e um frenesi tomou conta do meu interior. Arrastei seu corpo mata adentro e o cobri com uma poção capaz de eliminar o mau odor que a podridão traria, assim seria realmente comido por animais selvagens como na mentira que selou minha ruína. Segui até a entrada da cidade, espantei os cavalos no sentido contrário ao que viemos e fui até a modista. Era meu álibi perfeito e, além disso, encomendei vestidos para todas as mulheres da família, até mesmo para a pobre coitadinha que teria seu coraçãozinho machucado novamente ao perder também seu papai querido. Sim, decidi polpá-la.

Quando retornei da cidade, a casa estava quieta. Minhas filhas estavam no jardim e a futura órfã na cozinha preparando alguns doces. Sentei-me na sala ao lado aliviando meus pés numa poltrona macia e revivendo em pensamento os últimos momentos. De repente, algo interrompeu meus devaneios. Ouvi uma voz, porém ninguém estava conversando. Achei que estivesse cansada e fosse coisa da minha cabeça, mas a voz insistia. Resolvi me concentrar e assim, do nada, meu dom revelou-se! Eu ouvia os pensamentos de minha enteada. Eram claros e nítidos.

Após um minuto de êxtase recordando a carta de minha mãe, o que eu ouvi interrompeu minha linha de pensamento. A garota sabia de tudo, era cúmplice do pai e tinham tramado tudo para nos enganar novamente. Ele viajaria para não levantar suspeitas e assim que a garota fosse para algum lugar distante da fazenda, malfeitores contratados simulariam um assalto e mataria a nós três.

Sem pensar muito, levantei-me e fui até a cozinha dando continuidade ao teatro que ali se passava. Ofereci-me para provar um pouco do doce e fiz questão de lhe oferecer o restante do chá que servi a seu pai naquela manhã.

A próxima lua seria a crescente.

E nem todos foram felizes para sempre...

Lua CrescenteOnde histórias criam vida. Descubra agora