PRÓLOGO

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20 de março de 2018

Quando a noite caiu durante aquela terça - feira chuvosa, Cristina Davis começou a sentir a familiar sensação de sufocamento crescendo em seu peito. Ela sentia "ele" corroendo todo o ambiente ao seu redor. Olhou para as mãos trêmulas e respirou fundo tentando se acalmar, lembrou da voz de Jonatha, seu esposo, e tentou repetir suas palavras.

— Não é real. Você está doente. — sua voz soou rouca e fraca pelo cômodo dominado pelo escuro. — Acende a luz, Cris.. — Disse para si mesma. — Você precisa levantar e acender a porra da luz!

Saltou da cama e correu para o interruptor que com um click iluminou todo o quarto. Cristina olhou ao redor com o rosto úmido e o gosto de água salgada na boca, suas lágrimas rolavam sem controle por seu rosto fino com traços orientais enquanto ela encarava o cômodo vazio. Um choro de bebê. Um choro agudo, alto e desesperado. Ela correu para o quarto de Mary, tateou a parede em busca do interruptor, mas quando acendeu a lâmpada do cômodo, um grande estalo seguido de estilhaços de vidro trouxeram a escuridão de volta para o ambiente. Uma risada sombria soou pela casa, ou aconteceu apenas dentro da cabeça de Cristina?

Ela correu e pegou Mary no colo, a menina de dois anos parou de chorar no momento em que reconheceu o colo de sua mãe. Um pensamento surgiu em sua mente, o mais seguro era não estar mais tão sozinha, sair do apartamento e aguardar na recepção até Jonatha chegar do trabalho. Correu pela sala com a criança no colo, mas antes de chegar até a porta de entrada, Cristina parou bruscamente como se houvesse uma parede invisível no cômodo. Ela pode sentir uma força estranha contra seu abdômen, era como se mãos gigantes a segurassem pela cintura, e deixando Mary cair no chão, foi puxada de volta para o quarto da criança com tanta velocidade que sentiu seus pés não tocarem mais o chão. A porta do quarto de Mary se fechou com tanta violência que fez a casa inteira estremecer. Naquele momento, apenas o choro de Mary ecoava pela casa e mais nada.

Pouco tempo se passou até Joantha entrar afoito em casa e encontrar sua filha chorando sentada no chão, com um círculo arroxeado na cabeça.

— CRIS.. ? — chamou enquanto pegava a criança no colo e examinava o galo arroxeado. — Cris, amor.. está em casa?

Silêncio.

Jonatha colocou Mary sentada no sofá e ligou a TV em um desenho animado. A garota esqueceu o choro quase que instantaneamente e começou a sorrir para a televisão. Jonatha foi aos cômodos um por um, mas nem sinal de Cristina, somente quando entrou no quarto de Mary que encontrou a esposa jogada no chão. Correu para socorre-la imaginando que ela estivesse desacordada, mas a mulher encarava a escuridão em baixo do berço de Mary, com os olhos arregalados e vidrados.

— Amor... tudo bem? — Ele perguntou se sentando ao chão ao lado dela. — O que aconteceu? Porque a Mary estava sozinha chorando na sala? 

Silêncio.

Cristina nem ao menos se mecheu, apenas as lágrimas denunciavam que ela estava desperta, pois escorriam sem parar por seu rosto. Jonatha notou que os braços dela estavam com enormes arranhões avermelhados, alguns até sangravam.

— AMOR O QUE É ISSO? — perguntou assustado tocando levemente os arranhões. — CRIS FALA COMIGO... por favor. O que aconteceu?

Cristina virou o rosto lentamente para encarar o marido, seus olhos inchados revelavam a forte insônia que a impedia de dormir há semanas.

— Ele fez isso comigo. — sussurrou entre lágrimas, estava cansada, dizer isso ao esposo a deixava cansada. Um Psiquiatra jamais consideraria o que ela estava vivendo como algo além de algum sintoma de doença mental.

— Cris... de novo isso...

— É JOHN DE NOVO E DE NOVO E DE NOVO! — Ela se levantou em fúria. — MEU DEUS QUANDO VOCÊ IRÁ ME OUVIR? EU NÃO SOU LOUCA!

— Fala baixo! Fala baixo comigo, Cristina! Não precisa gritar para o prédio inteiro. Eu estou bem aqui. — disse se levantando também.

— Não! Não, você não está! Está sempre no trabalho, e eu grito... — ela secava as lágrimas em vão, chorando descontroladamente. — eu grito pra ver se você me escuta, John! Eu não estou doente..  olha aqui a prova! Olha meus braços!

— Meu amor... suas unhas estão manchadas, sua mão tem sangue... Cris, você fez isso com você mesma.

— Cristina olhou suas mãos e pode ver o sangue vívido em baixo das unhas e manchas de sangue nas mãos. Jonatha se aproximou devagar e segurou as mãos da mulher com as suas. — Você está doente, Cris. Você entende isso? Preciso que você entenda.. Você tem tomado os remédios que te dei?

— Eu não gosto deles, eles me deixam com sono. — ela susurrou sem forças para argumentar. — Eu preciso cuidar da Mary, sei que você acha que estou com depressão pós parto, mas eu amo minha filha..

— Eu sei, eu sei disso! — Jonatha começou a abraçar sua esposa com força. — Você é uma ótima mãe e uma ótima esposa. Eu te amo, Cris. Você só está passando por momentos difíceis. Acontece. É relativamente comum. A baixa de hormônios após o parto causa isso..

— Ela vai fazer dois anos, John!

— Sim, eu sei, mas pode durar anos mesmo, acontece. Está tudo bem, Cris. — Ele beijava a testa da esposa enquanto lágrimas rolavam por seu rosto também. — Eu não quero ter que internar você, querida.

— Não, por favor.. — ela se desesperava tentando se soltar dos braços do esposo para encara-lo de frente. — Não pode me afastar da Mary. Por favor, Jonatha..

— Shiiii, Shiii... calma. — ele a tomava em seus braços novamente. — eu vou fazer de tudo pra que isso não aconteça, mas me promete que vai tomar a medicação, Cris. Chamamos sua mãe pra te ajudar novamente, com a casa, com a Mary. Vai te fazer bem. Vai fazer bem para todos nós.

Cristina concordou em silêncio, sabia que Jonatha só retardava o inevitável. Aquela coisa queria a alma de sua bebê, ela sentia isso por todo seu corpo e ela sabia que de certa forma ela era a única que podia impedir que sua filha fosse devorada por aquela entidade diabólica. Já conseguia ver os olhos de Mary que mudavam em determinados momentos e sentia que aos poucos sua filha ia deixando de ser sua filha e ia se transformando em algo diferente. Cristina estava disposta a tudo para salvar Mary, mesmo que ninguém conseguisse entender depois, mesmo que Jonatha sofresse, mesmo que o inferno fosse seu destino.

Sorriu com todas as mudanças que aconteceram desde que Mary nasceu, apesar de tudo não podia amaldiçoar o dia em que deu a luz, mas a luz trouxe consigo a escuridão, uma escuridão densa e faminta que engolia Cristina dia após dia. Se soubesse tudo o que viria depois do nascimento de Mary, Cristina a teria matado ali mesmo, no hospital, imaginava que seria mais fácil. Mas agora, depois de dois anos lutando por aquela pequena criatura sorridente e brincalhona, tudo ficou mais intenso, mais forte, mais cruel.

Maternidade, uma dádiva de Deus, e ela orou e rezou para que Deus a salvasse, mas Ele não mostrou nenhuma misericórdia. O Diabo provava sua força  e presença toda madrugada, mas Deus se mantinha distante, indiferente a toda dor de Cristina. Seu esposo acreditava em Deus, mas negava o mal, ja ela era o contrário, a cada dia mais duvidava da existência de um ser benevolente lá no alto. Afinal de contas, se Deus realmente existisse, por que permitiria tanta dor e sofrimento? por que não salvara sua filha? por que não a ajudava?

Olhou para a janela escancarada, o vento balançava a cortina de seda, o ar gelado que entrava no ambiente a enchia de esperança. Não queria ter que chegar à isso, mas se fosse necessário, Oh Deus, se fosse necessário para salvar Mary...

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