Impulso

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O que é certo é o certo. E as coisas precisam fazer sentido para nós.

O vazio é entendido como o nada. Algo sem nada, o não haver de algo. Recipiente sem conteúdo, saco que flutua, vácuo, sem ar, vazio. É tão estranho, porque, muitas vezes estamos tão, tão, tão, cheios. Cheios de tudo e de todos. Mas se paramos para refletir, ou olhamos para dentro por um instante, não há nada. Estamos vazios. Acontece que às vezes o vazio é completamente enorme e cheio, às vezes, nada é muita coisa.

É tão triste perceber que está tudo bem, que você não terá culpados e nem motivos para sua dor/seu problema. Dói demais saber que uma química errada na sua cabeça pode te fazer perder a cabeça.

A glamourização e a tentiva de mudar de perspectiva faz com que alguns vejam aos doentes e sofredores que não tem ossos quebrados, como artístas, gênios, pessoas com muito a dizer, ou a transmitir, já que suas lutas diárias são travadas contra algo intangível. Balela, bobagem, maluquice, superestima, papo furado, tiro no pé.

Estava tudo bem, mas não estava.
Ele fazia tudo, absolutamente tudo certo. Sua disciplina tinha se tornado invejável, todos o questionavam e pediam conselhos, mal sabiam eles que aquilo era desespero, era um exagero doentio, uma produtividade tóxica, uma coisa que, claro, trouxe e sempre traz vários resultados, mas que alguma hora ia cobrar por eles. Só que, esse não era o problema, não tinha problema, apenas... Estava errado, estranho.
Infelizmente, a força tinha se perdido, o que o fazia fazer agora era apenas o impulso, o impulso de levantar-se da cama e o impulso de seguir rigorosamente sua rotina, era frio e sem paixão, mas era cumprido. O sorriso em seu rosto tinha fugido, agora nada o fazia voltar, não genuinamente. Ele tinha uma pele bonita, um corpo perfeitamente aceito em padrões de beleza greco-romanos, ele conhecia todos os hacks mentais para acionar ou desativar gatilhos e funções e sabia também trabalhar suas emoções de maneira focada para conseguir as coisas, colocava uma máscara e usava persuasão e oratória para entreter pessoas, fazer amigos e conseguir bens. Todavia, ao final do dia, aquele vazio. O silêncio, a quietude insuportável, o inexistente. Estava tudo bem, mas não estava.
Ele resolveu aumentar a intensidade "O que pode ser agora?", ele se questionava se estava doente ou algo assim, desconsiderava o fato de já ter sido um homem doente, e o ser é diferente do estar. Começou a ir aos cultos da igreja todos os dias, comprou outro curso online e investiu em suplementos alimentares e mais atividade física.
Sua performance quase o matou.
Morrer de verdade, isto é, no físico, parece mais interessante do que sucessivas mortes mentais, no caso dele nem um, nem outro se realizavam. Tinha distendido o ombro e quebrado a perna, agora, junto ao seu leito refletia sobre um exílio inventado, aquele que surgia, pois não estava realizando sua rotina, nunca tinha parado para pensar no que aconteceria se, depois de todos esses meses de força intensa, apenas parasse. A resposta veio sem palavras.
Na primeira noite chorou. Na segunda chorou mais e na terceira abriu a porta para a vontade. Aquela antiga, devia estar com saudade, porque agora o abraçava forte. Sentia, pelas manhãs, que alguém corria nu e em chamas na sua mente gritando que tinha medo. Ao entardecer acariciava suas cicatrizes e marcas, de tempos em que lâminas beijavam sua pele, constantemente. De noite, chorava. "Pra quê tanto choro meu Deus" ele não entendia a função das lágrimas, não havia um porquê, não tinha motivo nenhum, estaria seu corpo se enganando desta maneira? Fugindo de um perigo inexistente, sofrendo por uma angústia sem precedentes, doendo uma dor mentalmente.
Os dias se arrastavam. Não sabia que demorava tanto para se colar um osso, "Se para o osso é difícil a restituição, porque haveria de ser fácil para a alma?" Refletia sobre os julgamentos pelos quais passou, pelos olhares e as mensagens que recebeu, nas boas intenções muitos o prejudicaram, nas más intenções o crucificaram.
Estava cansado, mas não fazia nada. Estava com medo, mas não tinha monstro, estava em agonia, mas a penúria e a peste não o assolavam. E, aos poucos, velhas e novas indagações começavam a borbulhar em sua mente, revelando o vale nebuloso que se escondia por de trás da clareza que tinha conquistado. Pensava em sair, se levantar, ir a feira, ir a academia, ir a um encontro religioso, ir a praça... Era tarde, era tarde, era tarde, era tarde. Era tarde.
Estava atrasado para algo que nunca iniciou, desde sempre viveu sem propósito, porque nunca deu valor as missões e objetivos, não tinha nada. Estava tudo bem, mas não estava. As coisas começaram a cair aos poucos, seus amigos, sua rotina, seu trabalho, seus grupos, sua reputação, seu corpo.

A pensão era mesma cheia de vizinhos péssimos. Traumas, medos, paranóias, vozes, melancolia, todos e muito mais, moravam nos apartamentos vazios ao lado da casa dele. Ele ia lá às vezes, ligava o rádio, o ouvia por um tempo e então sumia, ficava cansado. Voltava a si e se esvaía, um ciclo estranho, um ciclo sem ciclo, o começo e o fim não se conectavam, eram distantes, até, despreocupados, não faziam sentido. A mente dele era bagunçada mesmo, tentava ser outro além dele mesmo, as nominações dos seus vai e vem não mudavam o fato da última queda.
Recaída. Perder uma vida que já não se sentia é cair na redenção dos mortos vivos. As almas malditas que habitam nossos corpos, do dele não mais tentaria, ele caiu a queda que nunca mais ia cair.
Sua cabeça ensanguentada na calçada em frente a pensão não emitia nada, nenhum som, nenhum pulso. O pulo tinha sido o último impulso. Um fim justo, a vontade foi suprida. Do drama à descida, o vazio se resignificou.
O que é certo é o certo. E as coisas precisam fazer sentido para nós.

Talvez não, talvez... Não.






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