capítulo único

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Era madrugada quando Portelinha, após 30 dias de merecidas férias, pegou a marginal rumo à padaria herdada do pai, o Sr. Portela. Fazia anos que não viajava para fora da cidade; a pele bronzeada e o ar despreocupado só podiam ter origem em um lugar que não respira dióxido de carbono como São Paulo.

O sol, ainda tímido, pintava o horizonte de laranja. No rádio do Fiat Uno azul escuro, as notícias do dia corriam apressadas; Portelinha, de janela aberta, sentia a brisa gelada e fétida às margens do rio Pinheiros, um esgoto a céu aberto. Dentro de poucos minutos, as férias do único funcionário da Micropadaria do Portela oficialmente acabariam e lá estaria ele preparando mais uma fornada de pães quentinhos e cheirosos.

Um canteiro seguido de uma ciclovia separam o rio e a movimentada pista expressa da marginal. Em uma das árvores, que passavam como vultos a 90km/h do lado esquerdo do carro, Portelinha avistou algo pendurado. "O que será aquilo?", pensou. "Parece preso com uma corda... um objeto grande, talvez". Portelinha era incapaz definir exatamente o que havia visto. Como nenhum outro carro parecia dar muita atenção, decidiu seguir viagem. Até sair da marginal, chegou a ver mais uma ou duas árvores com alguma coisa pendurada.

Agora dirigindo por ruas menos movimentadas, reparou em mais árvores com cordas penduradas e algo volumoso na extremidade. "Ou seriam bichos? Sem chance... quem penduraria um animal em uma árvore desse jeito?". No rádio ninguém falava sobre as misteriosas árvores, e nas ruas tampouco pareciam dar muita bola. O dia amanhecia e cada vez mais gente caminhava ocupada com a própria vida. Ao avistar mais uma árvore com um "pendurado", Portelinha decidiu parar. A curiosidade o consumia de tal forma que a fornada de pães podia esperar.

A pé, aproximou-se da misteriosa árvore e, conforme chegava mais perto, percebeu que o tal objeto tinha duas pernas, dois braços e uma cabeça. "Um boneco? Que brincadeira de mau gosto...". Não convencido, procurou um galho longo o bastante para cutucar o sapato do que parecia ser o boneco mais bem feito que vira. "Acho que vou ter que subir na árvore pra analisar mais de perto", pensou.

Portelinha, que subira em árvores durante toda a infância, não sentia agora a mesma emoção dos tempos de criança ou mantinha o ar despreocupado cultivado nas férias. Passava das 6h da manhã, ônibus cuspiam fumaça e fuligem, pedestres cruzavam a praça apressados, motos, caminhões e carros disputavam cada milímetro das vias cinzentas; Portelinha só conseguia encarar o tal 'boneco' naquela manhã gelada e malcheirosa.

Em poucos segundos, o padeiro subiu o suficiente para cutucar o 'boneco' com um galho. Ao primeiro toque, a corda girou revelando o rosto do pendurado: pele escura com tom azulado, olhos esbugalhados, língua roxa para fora da boca. "Caralho! Não pode ser... mas é...é... é um homem morto!"

Em choque, o suor brotava dos poros do rosto empalidecido e das mãos do padeiro, que escorregou e caiu sentado. No chão, cabisbaixo, agarrou a grama com as mãos, fechando-as com força. "Todas aquelas árvores no caminho...", refletiu à medida que uma lágrima escorria dos olhos descrentes no absurdo testemunhado. "São pessoas mortas", concluiu.

Portelinha ficou parado por cerca de uma hora encarando o homem enforcado. Ninguém parou para perguntar por que estava chorando ou para falar sobre o fato de haver uma pessoa morta pendurada numa árvore ali a vista de todos. De olho nas telas dos celulares, transeuntes passavam indiferentes.

"Será que eu tô ficando maluco? Tem um cara morto bem ali e ninguém liga?", pensou antes de decidir confrontar um senhor baixinho e barrigudo, com biotipo similar ao do próprio padeiro, diga-se, mas de uns 60 e poucos anos, que estava sentado no banco da praça lendo o jornal do dia.

— Bom dia, senhor. Desculpe..., posso dar uma palavrinha?

— Já lhe aviso que não tenho esmola.

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