A SÓS

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Eu estava apaixonado! aquele romance quase de filme, sabe? Só quem amou uma vez sabe do que eu vou dizer. Nós temos uma mania de achar que as coisas devem ser como nós queremos, mas o destino se encarrega de nos pregar várias peças.

Vou te contar como eu descobri o amor, me lembro como se fosse ontem... Eu estava lavando a calçada e ele passeando com o cachorro dele, completamente distraído com seus fones de ouvidos que provavelmente encontravam-se no último volume para levá-lo ao mundo da lua, qual costuma ficar. Meu gatinho, o Bigodes, apareceu numa fresta do portão e foi o que bastou para chamar atenção do Thor, seu cachorro, que veio quase voando para cima de mim que no susto acabei espalhando água para todo lado, inclusive no homem que viria a ser meu amor.

No susto, ele voltou para realidade, uma realidade bem molhada, diga-se de passagem. Ele segurou firme a corrente que prendia o cachorro e fez cara de poucos amigos, eu me desesperei e fiquei um pouco sem graça, ofereci uma toalha para que ele pudesse se secar enquanto eu o despia mentalmente. Ele enfim desamarrou aquela cara e com um sorriso espontâneo recusou, tirou a camisa e a pendurou no ombro e foi embora tão brevemente que mal pude ouvir o seu "obrigado".

Ele me despertou uma paixão muito forte, aquele sorriso, aquele jeito bruto mas bobo ao mesmo tempo, não sei, mas para os que acreditam em amor à primeira vista assim como eu, essa situação toda era um prato cheio.

Desde aquele dia comecei a reparar nele nos comércios do bairro, agora sempre que cruzávamos um com o outro fazíamos aquele aceno de cabeça cordial. Não éramos amigos para nos comprimentar mas não éramos completos estranhos, essa barreira havia sido rompida pelo Thor e Bigodes.

Descobri que ele costumava passear com o cachorro três vezes por semana, mais ou menos no mesmo horário, por volta das seis e meia da tarde, "coincidentemente" eu sempre tinha alguma coisa pra fazer na frente de casa nessas horas, um dia eu varria a calçada, no outro colocava o lixo pra fora, até tirar os matinhos que cresciam no meio do concreto rachado e que estavam esquecidos lá há tempos, eu tirei.

Seguíamos sempre o mesmo protocolo, era quase ritualístico, ele acenava com a cabeça e eu assentia, às vezes arriscava um "e ai, beleza?" mas jogado ao vento pois no fim da frase ele já tinha dobrado a esquina.

Certa vez, algo inusitado aconteceu comigo, não costumava comer fora durante a semana, mas naquele dia meu gás tinha acabado e ficaria muito tarde para cozinhar, então decidi ir até uma pastelaria ali do bairro e saciar minha fome por lá mesmo. Quando eu cheguei, lá estava ele parado no balcão para fazer seu pedido, fiquei tímido, mas como dizia minha tia, a sorte é um cavalo branco que passa uma vez só, então esteja sempre preparado. Não sei se o ditado era bem esse, mas não importa, o que importa é que tomei coragem e fui ao lado dele, fingi surpresa quando nossos olhares se cruzaram e ele automaticamente acenou para mim com a cabeça. Dessa vez, deu tempo dele responder a minha pergunta de "E ai, beleza?", mas eu nunca tinha chegado tão longe no nosso diálogo, então não sabia nada sobre ele e nem como desenrolar o papo, por isso falei a primeira coisa que veio à minha mente - O pastel daqui é bom, né?

Parecia aquelas conversas de elevador na qual nenhum dos envolvidos realmente querem estar ali e que não veem a hora de chegar em seus andares para se livrar logo dessa convenção social.

Peguei meu pastel e minha bebida e sentei em uma mesa com lugar para quatro pessoas, o mais engraçado é que meu pedido chegou mais rápido que o dele. Naquele dia a pastelaria estava muito cheia e quando o vi vindo em minha direção, mal pude acreditar, aquilo era praticamente um encontro! Ele pediu para sentar na mesma mesa em que eu estava, eu obviamente concordei e em um surto de entusiasmo, ofereci um pouco do meu caldo de cana para ele:

- Acabei pegando demais, aceita um pouco? A princípio ele recusou, mas insisti.

- Sério, sinto que preciso me desculpar desde aquele dia que te molhei sem querer.

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