Eu tinha quatorze anos quando tudo começou. As mortes, a destruição, o caos. O mundo antes não passava de um sonho distante e uma canção doce da qual não lembro a melodia. O medo se tornou um sentimento único e a solidão uma companheira constante. Quando fecho os olhos ainda posso escutar...
"A organização mundial de saúde emitiu o primeiro alerta sobre um novo vírus misterioso notificado pelas autoridades russas. Os primeiros casos foram acobertados pelo governo russo em uma tentativa de evitar pânico, mas o surto ja tomou conta do país e começou a afetar os países vizinhos como..."
- Mãe, você acha que isso vai chegar aqui? - Perguntei apertando a almofada sem tirar os olhos da televisão.
- Não sei, eu espero que não... - Minha mãe me envolveu em um abraço apertado.
"...Em todo caso, espera-se que SNV-3 seja contido nos próximos meses. Os países afetados já estabeleceram política de lockdown e..."
-mamãe, que horas o papai volta? ele ia me ajudar a montar o HélioII. - Aquele estúpido avião de brinquedo
- Ele ja deve chegar filho, venha cá! - Minha mãe puxou Caleb, meu irmãozinho, também pra perto em uma tentativa instintiva de proteger sua prole da destruição global iminente.
Dizem que estar perto dos entes queridos nos ajuda a suportar fardos pesados demais e nos conforta em momentos difíceis. Minha mãe levava isso muito a sério. Meses antes de mudarmos de cidade ela passou a ter crises de pânico, ela não gostava de falar sobre isso então nunca soube o motivo, depois de mudarmos as crises vinham com menos frequência e ela sempre obtinha conforto ao nosso lado.
- Eva... - ouviu-se a voz tensa de meu pai
- Papai! - Caleb correu ao seu encontro e pulou em seus braços. - Você demorou! eu já comecei a montar o HélioII sem você!
- Não acredito! isso é traição! - Meu pai brincou com Caleb.
- Mas você pode montar comigo agora, né?!
- Claro, eu... só preciso falar com sua mãe - ele colocou Caleb no chão e foi em direção ao sofá
"...Há uma estimativa de 346 mortes já confirmadas e mais de 1000 infectados com novos casos surgindo a cada hora por toda Rússia..."
- Meus Deus... - Disse minha mãe cobrindo a boca com as mãos.
- Pai... Tá tudo bem né?! - Perguntei
Meu pai só acariciou meu cabelo com um sorriso torto e olhos tristes, mas por algum motivo eu senti que ele ainda tinha esperança.
- Vai ficar tudo bem, a Alemanha e os Estados Unidos estão trabalhando junto aos cientistas e médicos da Russia, já estão investigando e tratando dos doentes. É uma questão de tempo... Vamos ficar seguros. - Ele tranquilizou
- Mas e nós? E quanto ao Brasil? - Perguntou minha mãe
- Ainda não tivemos nenhum caso, mas no hospital só falam disso. Tem muitos pacientes chegando com sintomas semelhantes ao SNV-3 mas não temos nenhuma confirmação do que realmente é. Até onde sabemos o vírus ainda não chegou aqui.
Minha mãe desligou a TV.
- Eu não quero mais ouvir. É horrível. - Disse ela
- Como acontece o contágio? - perguntei
- Os médicos russos dizem que é transmitido pelo ar - Disse meu pai
- Por que demorou tanto pra sermos alertados da existência do vírus? O que fazemos agora? - Eu senti o pânico se instalar e contorcer meu estômago.
- O governo russo assinou um tratado de sigilo, o resto do mundo só ficou sabendo meses depois. Tudo o que podemos fazer é esperar que tudo se resolva.
Aquela noite todos ficamos tensos, até mesmo Caleb, com apenas 6 anos, foi afetado pelo pânico inicial do surto mesmo sem ter noção do porquê.
- Elisa - Ele me cutucou
Eu gemi
- Elisa... Acorda! - Caleb me balançou
- o que é? - perguntei encarando a pequena figura com cabelos castanhos espessos e ondulados ao lado da minha cama.
- Tive um pesadelo, a mamãe e o papai foram pegos por um monstro comedor de gente e a gente ficou sozinho. Eu pilotei o HélioII mas a asa dele quebrou e a gente caiu e...
- Aí... calma ok? - eu o abracei - Estamos todos bem agora.
- A mamãe e o papai estão com medo, eu ouvi eles dizendo que vamos embora... Eu não quero ir embora, eu não terminei de fazer o HélioII ainda e se precisarmos dele? - ele piscou os olhos castanhos escuros.
- Eles disseram isso? o que mais você ouviu? - perguntei
- Eu não sei mas eu não quero morrer - Ele começou a chorar
- Ei ei! você não vai morrer! Tenho certeza que vai ficar bem - O abracei mais forte
- Olha... - Ele me entregou o avião de brinquedo
- Olha só essa coisa... - eu sorri - Está ficando... interessante!
- Ele vai ser o melhor avião de todos e eu vou ser o melhor piloto e se tivermos que ir embora eu vou salvar todo mundo e vamos voar ate o céu.
- Embora o nome dele seja horrível, tenho certeza que ele deve voar muito.
- Ele vai você vai ver.
Esperei até Caleb dormir e saí de fininho até o quarto dos meus pais, onde se ouvia uma conversa abafada e baixa por de trás da porta. Sentei no chão e ouvi atentamente.
- ...órgãos internos dele. Isso é medicamente impossível, eu nunca vi em todos os meus anos de carreira. - Disse meu pai
- Hélio... Eu estou com medo! O que vamos fazer? Como vamos proteger as crianças?
- Agora que o primeiro caso foi confirmado no Brasil é questão de tempo ate tudo piorar. Vamos ter que começar isolamento e distanciamento social. Evitar contato com pessoas infectadas.
- Mas Hélio... Você trabalha em um hospital!
- Eu sei... Eu não sei... não sei o que fazer! eu não sei...
Assim como meu pai disse, nas próximas semanas os casos no Brasil cresceram exponencialmente, foi implantado a política de distanciamento social e lockdown. Enquanto isso, em grande parte do mundo os hospitais já haviam entrado em colapso com super lotação e milhares de corpos. Os cientistas não haviam descoberto nada util para o tratamento da doença e já não haviam mais leitos nem médicos. Sobraram pouquíssimos profissionais da saúde pois a maioria ja havia sido infectada e morta e os outros começaram a temer e fugir. Não foi diferente com meu pai, depois do primeiro mês, os hospitais ja estavam lotando em todo o país, por sorte ele não tinha pego a doença ainda. Amigos e parentes nossos começaram a se infectar e morrer, então para nos proteger, meu pai decidiu que deveríamos nos afastar. No final do mês fomos pra casa de campo da minha vó junto com meu tio Nícolas e minhas primas gêmeas Nicole e Brenda.
Morar afastados nos deu esperança de que talvez se todos fizessem o mesmo, logo poderíamos recomeçar. Os dias seguintes não foram fáceis, a situação não parecia melhorar e a economia começou também a desmoronar. Não haviam mais supermercados, nem restaurantes, nem farmácias. As pessoas, agora, passavam fome e a criminalidade atingiu números preocupantes. As pessoas estavam desesperadas pra conseguir alimento e remédios pra suas famílias. Meu tio Nícolas havia abandonado o departamento de polícia, a situação ja estava caótica demais pra ser controlada.
Em uma noite de setembro, a lua amarela brilhava lá fora com mais intensidade, e a colina verde onde se localizava a casa estava mais silenciosa que de costume. Parecia que o tempo tinha parado, parecia que a terra havia prendido a respiração, parecia que algo estava prestes a acontecer.
Minha família estava reunida na sala após o jantar, todos em silêncio absortos em seus próprios afazeres. Aquela havia sido nossa última porção de comida, então meu pai e tio Nícolas planejavam começar plantio de milho, tomate e trigo. Minha mãe sentada a frente deles, escrevia no caderno utensílios para buscar na cidade. Brenda parecia distante sentada ali na poltrona, desenhava em seu caderno com o máximo de concentração e parecia não notar que Caleb desfazia as tranças de seu comprido cabelo castanho e cacheado. Nicole, por outro lado, estava sempre alerta do que se passava a sua volta. Ela observava todos com atenção com aqueles olhos de águia, subitamente o olhar parou sobre mim, ela ergueu as sobrancelhas, olhou rapidamente pros nossos pais e depois de volta pra mim. Ela queria conversar.
Nicole saiu primeiro, e eu sabia exatamente onde ela iria. O celeiro. Segundos depois dela sair, dei um tapa em Caleb, que resmungou, e cutuquei Brenda apontando a porta com a cabeça. Ela parecia ter saído de um transe, mas mostrou que compreendeu com um aceno de cabeça.
- Seu pestinha! - Disse Brenda passando a mão pelas tranças desmanchadas. - Você vai ver!
Caleb riu e saiu correndo esperando que ela fosse atrás dele.
- Pobre criança - Eu disse rindo sabendo que a Brenda não ia deixar barato. - Vem, vamos. - Puxei-a e saímos juntas até o celeiro.
Nicole estava sentada em um banco com os braços cruzados, quando chegamos ela se levantou. Nicole era alta pra idade dela, tinha cabelos castanhos cacheados assim como os de Brenda e aqueles olhos castanhos estreitos que transparecia toda a sua esperteza.
- Vocês ouviram? eles vão sair... De novo! - Disse Nicole exasperada.
- Ouvi que eles querem buscar mais remédios no centro. - Disse Brenda
Brenda era mais baixa que Nicole, mas parecia muito com a irmã. Seus cabelos estavam sempre trançados, com exceção daquela noite que, por culpa do Caleb, ela prendeu em um coque alto (Pobre criança).
- Nós vamos continuar treinando, certo?! Nós precisamos. - Eu disse
- Com toda certeza! - Disse Nicole - Uma hora eles vão perceber que precisam da gente. Não somos crianças!
Nós éramos, de fato, apenas crianças obrigadas a crescer antes da hora. Nós podíamos ser úteis e, diferente de Caleb, tínhamos maturidade pra entender as coisas.
- Eu desenhei o mapa da cidade - Brenda mostrou o desenho aberto em seu caderno que ela sempre carregava consigo.
- Cara, isso ficou muito bom! - Elogiei e ela corou
- Vocês tem certeza que querem fazer isso? - Perguntou Nicole.
Eu e Brenda assentimos. Então ouviu-se um grito ao nosso chamado da casa, alguém notou que saímos. Nos encaramos por um segundo, mas corremos de volta pra casa.
Quando abri a porta com Nicole e Brenda ao meu encalço, minha família comemorava junto a TV que estava ligada no noticiário. Estavam se abraçando e com o maior sorriso que já vi estampado em seus rostos. Aquilo aqueceu meu coração que batia com grande frenesia, era aquele sentimento que já não sentia a muito tempo. Esperança.
- O que houve? - perguntei
- ELES DESCOBRIRAM! - Disse meu tio que correu pra abraçar suas filhas como se tudo dependesse disso. - DESCOBRIRAM UM REMÉDIO.