Capítulo 3

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- Tem certeza que consegue dirigir isso? - Perguntei pra Nicole que respirava fundo apertando as mãos no volante.
- Não... - Ela respondeu
- Você consegue! O importante é chegarmos lá. - Brenda fez uma pausa - Vivas.
    Ouvi o ritmo da respiração de Nicole aumentando quando ela ligou o carro. Nós usávamos os trajes anti contaminação que roubamos da dispensa. Três trajes, pra três pessoas em específico, que iriam ficar furiosas quando percebessem que os roubamos.
    Nicole passou a primeira marcha, o barulho de plástico do traje ecoava pelo carro a cada movimento dela.
- Lá vamos nós! - Disse Nicole
    Ela pisou fundo demais no acelerador e o carro deu um salto da garagem para o caminho de terra que levava até a estrada. Eu notei Brenda, no banco do passageiro, se segurando no apoio de teto, enquanto eu segurava os dois bancos da frente com força.
- Vai com calma Letty - Falei
    Depois de um tempo, Nicole pegou o jeito e deixou a velocidade normal e constante, e assim conseguimos seguir viagem.
Pela janela aberta do carro, olhei para as árvores tortas, típicas do cerrado, que se erguiam nas laterais da estrada de terra. A lua cheia ainda brilhava acima.
- Certo, pega essa bifurcação da direita que vai levar pra rodovia GO-080. - Disse Brenda checando seu mapa no caderno com uma lanterna.
Nicole obedeceu o comando, ainda tensa. Parecia que havia sido petrificada por quão rígido e cauteloso estavam sendo seus movimentos. Mesmo com toda a tensão e o medo de não estarmos prontas, não pude deixar de sorrir por te-las comigo.
Nicole e Brenda eram 1 ano mais velhas que eu, e ter alguém com idade próxima a minha depois de ter perdido 2/3 dos meus amigos para o vírus, e me afastado do resto, foi o mais próximo que eu tive de um grupo de amigos.
As vezes me pegava pensando no que eu tinha antes. Meus amigos, minha casa, minha escola. Sentia saudades, mas eu não podia me dar ao luxo de reclamar sobre isso. Eu tive tanta sorte.
Naquele momento, ali no carro, eu pude refletir sobre as coisas que nos aconteceram. Eu sabia que provavelmente meu pai só estava tendo reações negativas a infecção, mas se minha mãe e meu tio não podiam buscar remédios pra ele, eu iria. E se fosse o vírus...
Não, não poderia ser. Nós não tivemos contato com infectados, a casa fica muito longe da cidade.
Mas ele foi a cidade 5 dias antes da febre, justo o tempo que leva para o primeiro sintoma se manifestar...
Não! Era cedo demais pra dizer. Se fosse a supernova mais alguém teria manifestado algum sintoma. Certo? Pensei.
- Você está muito calada. - Disse Nicole olhando pra mim pelo retrovisor - Isso é incomum.
- Pensando - Eu disse
- Seu pai vai ficar bem! Vamos pegar os antibióticos pra ele. - Confortou-me Brenda
- Eu sei. - Respondi desanimada
- De quebra ainda vamos mostrar pra eles que somos capazes de ajudar mais do que pensam. - Disse Nicole
    Vários quilômetros foram percorridos levando com eles vários minutos em que permanecemos em silêncio. Eu estava apenas observando como as árvores pareciam vultos sombrios quando iluminadas pobremente pelo farol do carro, quando notamos movimento a frente.
    Uma luz vermelha piscava sem cessar mais adiante. Uma fila de incontáveis carros se estendia até onde nos encontrávamos, e muitas buzinas de motoristas irritados podiam ser ouvidas.
    Nicole freou bruscamente, e nossos corpos foram jogados pra frente e depois pra trás, quando batemos as costas no banco.
- O que é isso? - Ela perguntou
- A polícia militar - Respondi analisando a gigantesca fila de pessoas apressadas e raivosas - Eles interditaram as rodovias, ninguém entra nem sai.
- E VOCÊ DECIDIU CONTAR ISSO AGORA? - Gritou Brenda
- Esqueci! - Respondi
- Ei vocês duas! Não adianta a gente brigar. - Nicole nos encarou. - Nós temos um plano?
- Entrar mesmo assim? - Falei
- Obrigada, gênio - Disse Brenda
- Vou encostar - Falou Nicole
    Ela conduziu o carro em direção ao mato que se estendia em torno da estrada e estacionou um pouco mais a frente. Assim que ela desligou o carro nós descemos e fomos até o porta-malas pegar as mochilas.
- Ok, e agora? - Perguntou Brenda
- Me empresta o mapa - Pediu Nicole
    Alguns segundos se passaram enquanto Nicole analisava o desenho de Brenda, que me lançava um olhar mortal.
- Foi mal, tá? - Pedi - Muita coisa rolou e eu não lembrei de contar. Mas que diferença faz? nós viríamos pra cá de qualquer jeito. Tínhamos que vir.
- É... - Brenda aliviou o olhar carrancudo - Tem razão! Mas da próxima vez, por favor tente se lembrar desses detalhes importantes!
- Achei! - Interrompeu Nicole antes que eu pudesse responder. - "Drogaria Sempre Bem", é a mais próxima.
- Quantos quilômetros? - Perguntei
- Eu diria uns... 6km.
- E como vamos passar pela PM? - Perguntou Brenda
- Ideias? - Nicole perguntou olhando em minha direção
- Damos a volta - Falei
- Sem ofensas, Elisa, mas suas ideias estão uma porcaria hoje. - Disse Brenda
- E você tem alguma ideia melhor? - Perguntei mas Brenda não respondeu
- Parece que vamos ter que seguir um plano horrível e esperar pelo melhor - Disse Nicole
Começamos a caminhada em direção a cidade, de longe ainda podíamos ver as luzes vermelhas piscando. Meu coração disparou com medo de sermos pegas, cada passo que dávamos era um passo mais perto do desconhecido.
    O barulho das botas na grama alta e ressecada falhava em ofuscar a zoeira dos carros a alguns quilômetros de nós. Continuamos andando, ainda incertas do que fazer depois que chegássemos próximas da entrada, mas convictas de que não havia outra alternativa.
    Já havia se passado, pelo menos, 40 minutos de caminhada quando conseguimos dar a volta pela posição conhecida da polícia. Chegamos a outra avenida lotada de carros, e a atravessamos passando entre a aglomeração.
    Algumas pessoas estavam de fora de seus carros gritando ofensas, outras imploravam. Notei uma família chorando e rezando dentro de um carro, todos protegidos com máscaras de gás, menos um garotinho no banco se trás, que parecia dormir com o nariz e a boca cheios de sangue.
    Minha garganta se apertou. Acho que ele não estava dormindo.
    Aceleramos o passo, passando por todas aquelas pessoas inconsoladas e amedrontadas, esperançosas de conseguir ajuda na cidade. Todas como nós.
- Isso tá um caos - Disse Brenda.
    Depois da travessia, finalmente entramos na cidade e paramos para observar. Havia corpos estendidos nas ruas, cadáveres de verdade. Talvez uns 20. Todos dentro de sacos amarelos com o símbolo de risco biológico estampado na frente.
    Estremeci com a cena, mas fora isso a rua parecia vazia, e as casas em volta não apresentavam nenhum tipo de movimento ou sinal de vida.
- Bem-Vindas a Goiânia! - Disse Brenda em voz baixa
- Se antes achávamos que era uma péssima ideia, agora temos certeza! - Disse Nicole
- Onde estamos? - Perguntei, a voz falhando
- Segundo meu mapa, devemos estar na Vila Jardim Pompeia. A farmácia fica logo no final da quadra. - Brenda checou o caderno novamente.
- Vamos sair logo daqui! - Disse Nicole
    Andamos tão juntas pela quadra, que parecíamos uma só. Nós sentíamos medo, mas isso não nos impediu de continuar. Passamos por mais casas silenciosas e mais dezenas de sacos amarelos.
- Caramba! Acho que já esvaziaram essa... - Disse Nicole
A frente da farmácia estava destruída. A porta metálica retrátil pendia torta em cima do vidro quebrado.
Entramos pelo buraco no vidro, uma perna por vez. Lá dentro estava escuro demais, então ligamos as lanternas cujos cliques ecoaram pela escuridão infinita, até que houve luz. As prateleiras estavam praticamente vazias, e todas haviam caído em um efeito dominó. Alguns produtos ainda estavam esparramados pelo chão.
- Você lembra o nome do remédio, Lis? - Perguntou Brenda passando a luz da lanterna pelas prateleiras atrás do balcão.
- Sim, tá aqui! espera - Peguei um papel dentro da mochila com as anotações da minha mãe - Cefalexina - Li
- Enquanto vocês procuram vou pegar mais algumas coisas - Disse Nicole
- Certo - Respondi
Eu e Brenda passamos por todos os corredores até que enfim achamos. Levamos também alguns remédios pra dor, ansiedade, anti-inflamatórios e o máximo de pacotes de curativos que conseguimos encontrar.
Nicole reparou na caixa registradora aberta.
- Vazia! Quem rouba dinheiro no fim do mundo? Não existe mais economia! - Ela disse indignada
- Talvez eles pensem que tudo pode se normalizar - Falei
- É, eu também pensava! Até ver todos aquelas pessoas mortas dentro de sacos como se não fossem nada! - Disse ela
- É desumano! Elas não tiveram nem um enterro decente - Disse Brenda entristecida
- E quem iria preparar o corpo? Quem iria pro velório? Mais da metade das pessoas já morreram, e quem sobrou quer passar bem longe das pessoas contaminadas! - Disse Nicole
- Continua sendo triste
- É! Continua... - Nicole e Brenda ficaram um minuto em silêncio enquanto eu andava procurando mais suprimentos
- Sessenta e dois reais uma lata de leite em pó! Isso é um absurdo! - Falei, e Nicole e Brenda riram por um segundo. - Vou levar três, senhor, obrigada! - Eu disse fingindo ser uma cliente e colocando três latas na mochila com as mãos enluvadas.
- Trinta reais um desodorante? - Nicole pegou um no chão olhando o rótulo - Quero cinco, por favor! - E colocou, também, na sua mochila.
- Mil e duzentos reais um perfume importado? - Brenda quebrou o vidro de perfumes - Sim, por favor.
- O apocalipse nos transformou em ladras! - Riu Nicole
- Pra que o perfume? - Perguntei, também rindo
- De fedidas já basta vocês!
Depois que terminamos de lotar as bolsas, demos uma última vasculhada pelo lugar, e então saímos seguindo o caminho de volta para o carro. A rua ainda parecia sinistramente fantasma, senti meus pelos se eriçarem por dentro do traje.
- ME DÁ ISSO!!! - Ouviu-se uma voz masculina as nossas costas
Nos viramos, mas foi tão rápido, que quando percebi já estava no chão com um homem em cima de mim. Me debati tentando empurra-lo, enquanto ele tentava abrir o meu traje hermético.
- Tá maluco? - gritou Nicole tentando puxa-lo.
- Solta ela seu monte de merda! - Gritou Brenda ajudando a irmã.
Estendi a mão pra minha mochila caída ao meu lado, e puxei a faca de cabo marrom, ainda um pouco suja de terra. Com um movimento rápido fiz um corte em seu braço, e ele recuou cambaleante, as mãos cobrindo o novo ferimento. Brenda e Nicole caíram.
Nos levantamos o mais rápido que conseguimos, com aquele traje largo. Eu ainda estendendo a faca na frente do rosto, o encarando com ferocidade. Ele parecia ter uns 35 anos, cabelos escuros, a pele muito suja, assim como as roupas. E o nariz... Sangrando.
- O que você quer? - Perguntei ofegante
- Me dá! Me dá... Dá pra mim! - Ele girava pelos calcanhares, olhando pra cada uma de nós, ainda apertando o corte no braço.
- Dar o que, maluco? - Disse Nicole rispidamente
- Acho que ele não está lúcido - Disse Brenda
- Me dá!!! - Ele gritou tentando atacar Brenda, mas ela o golpeou com um chute, e ele caiu.
- Boa! - Falei
Ele ficou ali no chão, olhando para o céu e repetindo "me dá" "dá pra mim" baixo e entredentes. Eu, Nicole e Brenda nos aproximamos dele. Eu ainda com a faca estendida.
Nicole o cutucou com o pé, até que...
Ouviu-se um som, um som vindo dele. Uma espécie de explosão baixa e abafada. Ele se engasgou com sangue por um segundo e depois... Morreu. Morreu ali, diante de nós. Buscando desesperadamente uma salvação. Uma salvação que não veio. Um presente que ele não recebeu.
- Mas que porr... - Disse Brenda baixinho.
- Elisa, me empresta a faca! - Disse Nicole agachando perto do cadáver, eu me detive por um momento ainda paralisada por ter acabado de presenciar uma morte. - AGORA! - Entreguei a faca a ela.
Nicole cortou a camisa do homem, e começou uma massagem cardíaca. Ela ficou algum tempo tentando, e tentando fazer com que ele voltasse. Mas nada.
- Não, não, não... - Disse ela
Ela ergueu a faca e respirou fundo, então cortou o peito dele. Ela o abriu. O que ela estava fazendo?
Assim que ela cortou, sangue esguichou sujando o traje de Nicole. Ela afastou a pele e... E não tinha nada. Só sangue, carne e ossos. Muito sangue. Sangue jorrando do corte, do nariz, da boca, até dos olhos e ouvidos, formando uma possa viscosa pelo asfalto.
- Tarde demais! - Disse Nicole - Ele implodiu.
Não tínhamos nada para cobri-lo, então tivemos que o abandonar ali. Sentimos muito pelo ocorrido, mas não tinha mais nada a ser feito.
    Seguíamos pela rua, juntas. Devia ser mais de meia noite, mas era tanta a adrenalina que o sono não veio. Só continuamos ali, tentando esquecer o horror que tínhamos acabado de vivenciar.
    Então, do cruzamento pudemos ouvir um som de galope, e paramos de repente. Ficamos ali paradas, com medo de chamar atenção de quem quer que fosse o cavaleiro. Mas o som foi ficando mais alto, e mais alto e ainda sim não conseguimos nos mexer. Foi só que então, o cavaleiro apareceu no fim da rua, e pudemos ver o seu rosto.
     Tio Nic.

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