PAIXÃO

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— Acabaram os cereais — disse Helga, enterrando uma colher de pudim de chocolate goela abaixo.
— Nem imagino o porquê — replicou Faraday, num murmúrio zombeteiro.
Helga arregalou os olhos, permitindo-se ficar ofendida.
— Ei, nem vem! Quem vive indo no compartimento de suprimentos é o Alexandre. — Seu indicador pôs-se na direção de sua vítima, a colher ainda pendendo da boca.
Alexandre ergueu as mãos, rendido.
— Sinto muito, Helga, mas vai ter que achar outro culpado. Tinha 42 pacotes; eu mal comi cinco durante toda a viagem.
— E mais quantos, desde que chegamos aqui? — indagou Fernández, os braços cruzados, sério como sempre.
— Mais dois, talvez? — disse Alexandre, incerto.
— Bom… — Helga soltou um arroto que infestou toda a tenda — se não foi ele, nem o Faraday, nem o Fernández e nem eu, quem foi?
Faraday ergueu uma sobrancelha.
— Sinceramente, eu ainda não descartaria você, Helga.
A mulher roliça respondeu-lhe com um soco no ombro.
— E quanto a Jade? — perguntou Alexandre.
— Ela respondeu o mesmo que vocês — disse Fernández.
— Billy? 
— A mesma coisa. 
— Você?
Fernández franziu as sobrancelhas.
— Sabe a resposta.
— Mas que maravilha pessoal! Tem um fantasma roubando nossa comida… — exclamou Helga, amargamente.
— Ou o Thomas — retrucou Faraday.
O rosto de Fernández se obscureceu.
— Muito engraçado, Faraday.
O inglês encolheu os ombros.
— Ora, nunca se sabe…

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Tum-tum!

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Montanhas transbordando de neve, brancas como calcário em pó, rodeavam o abrigo como uma grande tigela. Acima, as estrelas relampejavam pelos céus como diamantes afundando num mar negro. A noite ali era esplendorosa. Billy ergueu os olhos para contemplá-la, após enviar uma mensagem à Estação Central, informando de que tudo ocorrera bem. Exceto…

— Daqui a quanto tempo eles vão receber? — ecoou a voz de Jade atrás dele.
Billy se virou e rapidamente fez o cálculo mental.
— Dentre uns 27 anos terrestres, aproximadamente.
— É muita coisa… — O vento enregelado soprou sobre os cabelos castanhos claros dela.
— Sim… — respondeu, estupidamente.
Jade caminhou em direção a ele, graciosa como um cisne.
— E pretende fazer o que durante todo esse tempo?
— Eu… hã… bem…
Ela se enroscou em Billy e enlaçou-lhe num cálido beijo.
— Aqui uma sugestão.
— Olha, eu até que gostei dela… Eu…

Uma sombra irregular estava encostada entre as dobras do sopé de uma montanha, chamas azuis orbitais espreitando da escuridão, e moveu-se quando seu dedo a mirou. Mas quando Jade voltou-se para olhar naquela direção, nada havia ali.

— Que foi?
Billy estremeceu, sentindo os olhos lacrimejarem.
— Nada…

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Tum-tum!

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— Como aconteceu? — inquiriu Fernández. Sobre sua à frente, imperava o caos.

Quando partiram da Estação Central, havia dentro do compartimento de suprimentos 36 latas de sopa com ervilha; 30 latas de carne de porco; 30 latas de coquetel de camarão; 24 latas de frango com arroz; 18 latas de hambúrgueres e mais outras 18 de salsicha. 30 pacotes de lasanha desidratada; 24 pacotes de biscoitos e 42 de barra de cereais.
Havia até 6 pacotes de sorvete desidratado, de acordo com a preferência de cada tripulante. 

Agora, todo o suprimento restante se assomava em míseros 10 itens: 7 em pacotes a vácuo e 3 enlatados.

Alexandre coçou os cabelos crespos, nervosamente.
— Como num piscar de olhos? Às 12hrs eu tinha vindo verificar e quando voltei cinco minutos depois… nada!
— A gente 'tá completamente fodido — divagou Helga, com a língua mais alta que os pensamentos. 
— Não estamos fodidos — respondeu-lhe Fernández. — Nós ainda temos a estufa.
— A estufa? — Alexandre cobriu o rosto com as mãos. — A estufa mal rende 20 kg de alimento por mês.
Fernández deu de ombros.
— Agora pouco importa. É o que nos resta. 

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⏰ Última atualização: Jul 20, 2021 ⏰

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