O início de tudo...

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Eram quase dezenove horas quando decidi ir até a casa da minha amiga Cloe, estava empolgada e ansiosa demais para esperar por mais um dia, precisava urgentemente mostrar minha nova boneca para ela.

Meus pés eram pequenos, o que fazia o caminho mais longo, mesmo ela morando duas casas depois da minha. Eu corria tão rápido que meu coração estava acelarado, não prestava atenção em nada ao meu redor, por isso, pisei em uma poça de lama, sujando toda a minha saia rodada verde.

Quando finalmente cheguei em sua casa bati tão forte que minha mãozinha de menina de nove anos doeu, meu sorriso mal cabia na boca. Aquela não era uma simples boneca, era a boneca que todas as meninas da época queriam e mamãe depois de muito sacrifício conseguira finalmente comprar.

Fui recepcionada pelo seu irmão mais velho, que estava sem camisa e usava bermuda jeans, ele tinha dezessete anos.

_ Olá, Sandro! A Cloe está?_ Falei arfando por causa da corrida, estava extretamente exausta.

_ Olha ela, doce Maria. Infelizmente ela não está! Foi ao mercado com a mamãe. _Respondeu enquanto pegava minha boneca e me levava até a sala.

O segui pela sala e sentei em um sofá vermelho, a TV estava ligada passando um programa de auditório, daqueles com apresentadores divertidos e bailarinas bonitas. Fiquei vidrada na imagem por um bom tempo.

Sandro sugeriu que eu esperasse por  Cloe, que ela chegaria em breve.
Mas, estranhei quando ele sentou ao meu lado no sofá, tão próximo...

Ele era um rapaz bonito para os padrões brasileiros, pele morena, olhos castanhos, corpo sarado, cabelos ondulados, além disso era alto, pelo menos o suficiente para parecer gigante aos meus olhos na época.

Naquela noite, fria, úmida e sem a Cloe, Sandro abusou do meu corpo de uma forma tão dolorosa e hostil que algo se quebrou dentro de mim, algo tão frágil e delicado, que mesmo depois de onze anos eu ainda estava estilhaçada, tentando juntar os pedacinhos dia após dia e apavorada ao ver saias verdes e bonecas...

....

Cloe nunca soube o que houve, nem mesmo os meus pais ou qualquer outra pessoa que convivia conosco. Quando ocorreu eu não falei porque não sabia do que se tratava, só sabia que doía e era errado porque ele disse que minha mãe me colocaria de castigo se descobrisse.

Ele não voltou a me tocar, talvez tenha sido algo esporádico, mas eu também fugia todas as vezes que ele aparecia nas festas de família, cada vez que ele conversava com o meu pai e sorria eu pensava que ele estava falando sobre o que ocorrera e meus pais me colocariam de castigo.

Sandro conseguira me convencer que eu tinha culpa e que seria punida se ousasse abrir a boca.

Mas, o meu mundo caiu aos doze anos, quando durante uma aula de ciências o professor explicou sobre a reprodução humana. Naquele momento o meu dia que tinha começado normal e rotineiro ficou em câmera lenta, um calafrio percorreu o meu corpo, todas as vozes na sala de aula se tornaram distantes e só ouvi ruído difusos por um bom tempo.

Saí correndo em direção ao banheiro e fiquei fixa na frente do espelho fitando a minha imagem, meus olhos pretos encheram-se de lágrimas, meu rosto pálido tornou-se petrificado, os meus cabelos castanhos grudavam no meu rosto molhado, tentei retirar mas foi inútil. Sentei no chão fétido característico dos banheiros de escolas do ensino fundamental, abracei os meus joelhos e abafei o grito que tentava escapar da minha garganta. Pois foi ali, no dia ensolarado e cheio de flores que eu descobri não ser mais virgem.

Depois daquela descoberta todas as sensações horripilantes afloraram, eu sentia nojo do meu próprio corpo, e um medo que estrondava pelas minhas veias. Já que minha família era tradicional focada nos valores do casamento e da castidade, assim como todos que nos cercavam. Aquele foi só o gatilho para não me sentir mais digna de ninguém, temer os homens e detestar cada pedaço de mim.

Passei os cinco anos seguintes correndo de Sandro, evitando olhar em seus olhos, não abrindo a porta quando estava sozinha e até me escondendo embaixo da cama quando ele aparecia de repente para conversar com o meu pai. Detestava que ele me olhasse, mas seu comportamento era totalmente respeitoso para comigo, as vezes ele comprava doces e levava para mim, que recusava sempre.

Meus pais eram completamente apaixonados por ele, sempre elogiando e ajudando no que podiam. Se eles soubessem...

Quando o meu corpo de mulher começou desabrochar, chorei e escondi com roupas largas, fugindo de tudo e completamente tudo que me deixasse levemente atraente. Morria de medo de atrair os olhares dele ou de qualquer outro.

No auge dos meus dezesseis anos me apaixonei de maneira platônica por um garoto da escola, mas nessa idade ninguém quer a garota que se veste com as roupas da seção masculina, que não usa maquiagem e todos esses trololós que as adolescentes compram para se enfeitar.

Eu não me sentia bonita, e nem sabia como fazer, mesmo com as minhas colegas tentando ao máximo ensinar, o medo era maior que a vontade. Ainda lembro que os meus olhos ficaram úmidos quando entrei na sala de aula com minha colega Samanta e somente ela recebeu o "bom dia" dos garotos que ignoraram totalmente a minha presença, mas também pudera, ela era lindíssima, corpinho definido, cabelos curtos cacheados loiros, olhos castanhos, nariz empinadinho.

Mas, a verdade é que depois de toda a rejeição que experimentei por parte dos garotos, desprezo e zoação por parte das garotas e pavor por ter a presença de Sandro em minha vida, eu aprendi a lidar. Comecei a terapia e jurei que aquele segredo morreria comigo, além disso encontrei um amor singular e puro por parte dos gatos, acumulando vários pelo meu quarto, reais e miniaturas. Também descobri a paixão pela solidão, jogos, séries e livros.

Aos 17 anos decidi que cursaria medicina, seria ginecologista e orientadora sexual, para que ninguém passasse por algo semelhante ao que passei, porque quando alguém violenta o seu corpo também suga a sua alma.

Mesmo tendo um complexo de inferioridade gigante e me julgando incapaz, consegui ser aprovada em uma universidade de prestígio e iniciar uma nova jornada.
Sempre repetindo "Vamos de degrau em degrau".

Estava realmente empolgada, pois em 6 meses estaria na faculdade, ainda moraria com os meus pais, mas era uma chance de começar uma nova vida, ja que eu seria adulta e universitária, ninguém me conhecia naquele lugar, era como uma tela em branco dando oportunidade para que eu fosse quem quisesse. Além disso Sandro mudaria de cidade e com sorte nunca mais voltaria a ve-lo.

Mais uma sobrevivente...Onde histórias criam vida. Descubra agora