Bianca e Felipe são irmãos, cresceram juntos e sempre foram inseparáveis, e agora irão se reencontrar após Felipe passar cinco anos preso por um crime que não cometeu. Porém, quando um misterioso faxineiro passa a lhes perseguir trazendo uma inesper...
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"And I'dgiveupforever to touchyou"
- GooGoo Dolls
"Eu só queria Passar um tempo lá em casa Me deu saudade da Bahia" - Vivendo do Ócio
Na madrugada do dia quinze de julho, um avião caiu na serra, desaparecendo num rastro de fogo em meio a vegetação densa e a neblina. Nesse dia, a cidade parou. Todos queriam acompanhar o noticiário, a cobertura das buscas, rezando para que algum sobrevivente fosse encontrado. Porém, após horas e horas de resgate veio a confirmação de que todos os passageiros estavam mortos, incinerados na explosão do veículo.
Na noite do dia seguinte, Bianca foi atingida por uma crise de ansiedade e passou a noite acordada. Ela deveria tentar dormir um pouco, pois o dia seguinte seria muito importante, mas o sono simplesmente a abandonou devido ao turbilhão de sentimentos que embalavam seu espírito. Antes do nascer do sol ela já havia feito exercícios, maratonado Steven Universo, terminado de ler um romance clichê, escrito poesias, finalizado um jogo de RPG num velho SNES e dançado ao som de Blinding Lights, mas nada disso adiantou para reprimir a inquietação que sentia.
Bianca nem mesmo sabia se queria fugir dessa sensação já que ela havia vindo por um bom motivo. Quando o brilho do sol da manhã inundou o apartamento, ela estava sentada no sofá assistindo mais uma reportagem interminável sobre o acidente aéreo, seguida de homenagens para as vítimas. Sempre foi difícil para Bianca lidar com a morte, era triste para ela imaginar pessoas queridas mortas e saber que nunca mais as veria. Ver rostos desconhecidos na televisão sob as mesmas circunstâncias a fazia se sentir da mesma forma, chateada, diminuída, como se a vida fosse uma chama prestes a se apagar a qualquer momento, e isso drenava as suas esperanças sem que ela percebesse.
Eram sete da manhã, seu compromisso só seria às dez mas ela já estava pronta, assim como a mesa de café da manhã perfeita já estava posta e tudo estava arrumado. Seus olhos encontraram um calendário disposto na sala, com um círculo vermelho em torno do dia atual. Dezesseis de julho, o dia em que reveria seu irmão após ele ter passado cinco anos preso.
Quando não suportou mais esperar em casa, Bianca desligou a televisão, calçou seus tênis velhos, pegou sua bolsa, entrou em seu carro humilde e foi rumo à penitenciária. Ali o clima era diferente do resto da cidade, era um local afastado, silencioso, marginalizado, esquecido pela sociedade, uma calçada de largos ladrilhos cinzentos diante de um grande portão esverdeado num muro gigantesco, adornado por cercas elétricas. Seu coração palpitou cada vez mais rápido a cada segundo que passava. Na tentativa de se acalmar, Bianca, com as mãos apertando a alça da bolsa, olhou em volta. Ela não estava sozinha ali, tinham outras pessoas com ela, em sua maioria mulheres, mães e namoradas de detentos. Os carros passavam a toda velocidade pela avenida lá atrás. Havia uma barraquinha ao lado onde ambulantes vendiam suco com salgado indiferentes ao peso daquele local, seguindo seus negócios alegremente como fariam se estivessem na porta de um estádio de futebol em dia de clássico. Guardas armados monitoravam as redondezas em guaritas, atentos a qualquer distúrbio.
E havia um faxineiro. Um homem silencioso, calvo de meia idade, usando um uniforme azulado, sem crachá e com um boné. Ele trazia consigo um carrinho de limpeza com vários produtos, e limpava a calçada com um esfregão molhado. Uma cena tão comum que Bianca fingiu não dar atenção, mal sabia ela que esse faxineiro estaria presente no momento em que tudo mudaria, e essa incerteza a incomodou. Conformada com a trivialidade do destino, ela o ignorou.
O tempo passou lentamente, minuto por minuto, até às dez em ponto. O portão se abriu e Bianca se emocionou ao rever o rosto jovial de Felipe, o seu irmão. Ele saiu tranquilo, a passos lentos, como se tivesse passado cinco anos numa colônia de férias em vez de numa prisão. Ao ver a irmã, Felipe abriu os braços com um sorriso bondoso no rosto.
— Lipe! — Bianca correu para abraçá-lo com os olhos tomados por lágrimas, sentindo o afeto acolhedor há muito negado. Mesmo sendo filhos de pais diferentes, Bianca e Felipe eram muito parecidos. Ambos eram negros, tinham o mesmo cabelo cacheado volumoso e os mesmos olhos cor de âmbar. Também tinham a mesma altura, o que lhes permitia se encaixarem perfeitamente naquele abraço. Bianca chorava sem parar, tomada pela emoção. Felipe não era de chorar, mas demostrava estar feliz por está perto da irmã novamente, abraçar seu corpo e sentir a fragrância adocicada de seu perfume — Que saudade, mano!
— Para com isso, a gente se viu no dia de visita, tá com nem uma semana direito — Lipe respondeu com uma risada irônica.
Os irmãos deram as mãos e foram embora da penitenciária, deixando o pesadelo do encarceramento para trás. Em meio ao seu serviço fundamental, o faxineiro os observava enquanto arrumava a aba do boné.
Eles entraram no carro e voltaram para o centro da cidade, onde fica o apartamento de Bianca. O trânsito corria sem pressa e sem grandes perturbações, o mundo ainda parecia embalado naquela paz típica da aurora da manhã. Uma música relaxante tocava no rádio, Felipe observava as casas e os prédios enquanto sua irmã dirigia. Mesmo em silêncio eles ainda compartilham os mesmos pensamentos de felicidade por estarem juntos de novo e por Felipe está finalmente livre.
Cinco anos antes, Felipe estava no lugar errado na hora errada. Ele havia saído com alguns amigos para beber na exata noite em que um dos seus companheiros de farra, o filho de um grande empresário, assassinou a namorada a sangue frio no banheiro do bar após um desentendimento. Não demorou muito para que o poder monetário do empresário acobertasse o crime do filho, livrando-o da condenação. Felipe foi preso injustamente como bode expiatório pelo homicídio chocante, sendo apontado também como suspeito de tráfico de drogas e gerente de um cassino clandestino, outras das atividades ilícitas favoritas do burguês, mesmo com todas as evidências e testemunhas apontando o contrário. A corda da desigualdade social se rompe do lado mais fraco, impossibilitando que um preto pobre possa se livrar de tais difamações e enforcando-o na reclusão de uma grande injustiça.
Alguns meses depois de sua prisão, em meio a uma batalha judicial inútil, a mãe deles também morreu, vítima de um suposto acidente de carro. Nesse período, Bianca viu-se sozinha, tendo que lidar com advogados parasitas, investigadores desinteressados, desemprego, dívidas, pessoas que fingiam querer lhe ajudar, racismo, muita coisa dando errado e o pior de tudo: a solidão. O máximo que ela conseguiu foi, após pouco mais de um ano de detenção, convencer o juiz a reduzir a pena do irmão mediante o seu bom comportamento. Em seguida, tudo que ela pôde fazer foi esperar, ver os dias se arrastarem preguiçosos até o tão aguardado momento em que tudo se resolveria. Ainda haviam pontas soltas nessa história que nunca se fecharam, mas por enquanto tudo ficaria bem.
— E agora? — Felipe perguntou, atraindo a atenção da irmã que estava distraída observando um faxineiro limpar a fachada de uma loja, esse muito parecido com aquele que ela havia visto alguns momentos antes — O que faremos?
— Agora a gente segue em frente — Bianca respondeu.
— Vai ser difícil conseguir um emprego sendo ex-presidiário — Felipe tornou-se cabisbaixo.
— Como se já não fosse difícil antes — Quando pararam num semáforo, Bianca desligou o seu celular que não parava de tocar.
— Ainda temos alguém pra nos ajudar? Alguém tipo a Mary?
— Não estamos mais juntas — Bianca respondeu, a luz verde do semáforo se acendeu e o carro saiu — Eu entendo que você tá nervoso, e que de agora em diante tudo vai ser mil vezes mais difícil do que já seria para um rapaz negro num país racista com um idiota como presidente, mas, por hora, que tal se animar? Eu preparei um dia divertido para a gente passar todos juntos!
— Você sempre tem os melhores rolês, maninha — Felipe se encostou no banco e sorriu, absorvendo a melodia harmoniosa que algum artista nacional cantava pelas ondas do rádio. Porém, em seu íntimo ele ainda estava frustrado com as decisões que arruinaram sua vida. Naquele dia fatídico, Bianca havia lhe convidado para ir a casa dela jogar videogame, e ele havia recusado de forma mais bruta do que o necessário. Se tivesse aceitado, muita merda teria sido evitada.
Instantes depois eles chegaram no prédio residencial onde Bianca morava e subiram para o apartamento, passando por mais um faxineiro igualmente idêntico aos anteriores que limpava a recepção. Já em casa, eles saborearam cada guloseima disposta na mesa de café da manhã que Bianca havia preparado e decidiram, por enquanto, só conversar sobre coisas boas. Porém, tal combinado logo foi interrompido quando as notícias sobre o acidente de avião que passavam na TV atraíram a atenção de Felipe e Bianca teve que explicar o ocorrido.
— Vem! — Bianca guiou o irmão até o corredor do apartamento, parando diante da porta de um quarto paralelo ao seu. Ao entrar, as paredes azuis e a mobília amadeirada atingiram Felipe como um meteoro de nostalgia — Esse é seu quarto, eu arrumei tudo para deixar parecido com aquele que tínhamos quando éramos crianças.
— Ficou tão perfeito, nossa, muito obrigado — Felipe sentou-se na cama — Lembra de quando a mamãe ficava aqui te ajudando com a lição de casa e depois eu entrava calado como se não tivesse quebrado nada com uma bola de futebol?
— Não tem como esquecer, foram bons momentos — Bianca sentou ao lado do irmão — E você sempre quis ter o quarto só pra você — Eles riram juntos — Bom, não é o mesmo quarto né?
— Mas já serve, você arrasou — Felipe novamente ficou cabisbaixo — Sinto falta da mamãe.
— Também sinto falta dela às vezes, mas sei que agora ela deve está feliz por nos ver juntos de novo — Bianca abraçou o irmão de lado, arrancando um sorriso dele.
— Então, o que vamos fazer agora?
Era pouco mais de meio dia quando eles saíram do apartamento, dirigindo até um shopping onde passaram todo o resto da tarde, se divertindo enquanto plateias curiosas se amontoavam em frente a vitrines que transmitiam em suas telas a cobertura do acidente aéreo. Lá, os irmãos reunidos almoçaram em seu restaurante favorito, foram ao cinema e realizaram um antigo ritual familiar, ver todos os filmes que estiverem em cartaz em sequência, um atrás do outro, acompanhados com todos os lanches possíveis de se encontrarem naquela rede de fast-food que eles sempre imaginaram que o palhaço fosse o dono. Em seguida, compraram roupas novas gerando no cartão de crédito de Bianca uma dívida que ela nunca pagaria. Ver dois jovens negros animados andando por aí com um monte de sacolas foi uma cena que chamou a atenção de alguns seguranças, que não tiraram os olhos deles durante todo o passeio. Mesmo incomodado com esse inconveniente, Felipe tentou ignorar e manter o clima positivo, não queria estragar o dia perfeito que Bianca havia planejado.
Após gastarem algumas dezenas de dinheiro em fichas de fliperama e jogarem um contra o outro até seus dedos ficarem calejados, Felipe e Bianca saíram do shopping e foram para a praia a tempo de verem o pôr do sol, abraçados um ao outro na areia da orla.
— Acho que esse é o melhor dia da minha vida — Felipe comentou com o olhar admirando a coloração rosada do céu no fim de tarde — Pela primeira vez em muito tempo eu não sou uma vítima das circunstâncias, um neguinho azarado. Eu finalmente sou eu, e estou aqui com a minha irmã vendo o pôr do sol na praia. Você não imagina o quanto eu senti falta disso.
— Confesso que também senti. Na última vez que vi o pôr do sol eu ainda tava com a Mary, foi logo antes da gente brigar e se separar. A gente até combinou de sair numa viagem juntas para tentar se resolver, mas nunca aconteceu — Bianca pareceu saudosa em suas palavras.
— Por que vocês terminaram? — Felipe comentou com um sorriso carregado de ironia no rosto, incomodando Bianca com sua indiscrição — Ela era tão legal.
— Você só diz isso porque não convivia diariamente com aquela chata — Em vez de raiva, Bianca comentou sobre a ex-namorada em meio a uma risada.
Eles se levantaram da areia suja de lixo e caminharam juntos pelo calçadão, aproveitando a movimentação agradável do local. Era um dos favoritos deles, sempre que possível iam caminhar ali, seja para fazer exercícios ou só para desopilar, mas isso já fazia muito tempo e eles nem sequer se lembravam como tudo acabou.
Então eles passaram por mais um faxineiro, exatamente igual aos anteriores. Mais um trabalhador com um carrinho de limpeza e um esfregão, usando seu uniforme azul. Exatamente igual àquele que estava na calçada da penitenciária naquela manhã, que estava no centro da cidade, na recepção do prédio de Bianca, e no shopping. Tinham quatro deles no shopping, um limpando o salão do restaurante, um na praça de alimentação, outro em frente a loja de roupas e até mesmo um dentro da sala de cinema. Também tinha um no fliperama, e agora tinha um bem ali no calçadão, a menos de dez metros deles. Bianca poderia ter enlouquecido, ou se confundido, mas por mais absurdo que parecesse ela tinha certeza absoluta de que sempre era o mesmo cara, o mesmo homem de meia idade, calvo e de olhar sereno.
— Estranho — Bianca ponderou enquanto chamou a atenção de Felipe para o faxineiro — Eu tenho a impressão de já ter visto esse cara antes.
— É só um faxineiro, tem vários por aí — Felipe respondeu sem dar importância, mas secretamente com medo — Você nunca repara nesse tipo de profissional e quando repara estranha mesmo.
— Não sei, tenho a sensação de está sendo seguida desde de manhã cedo — Bianca comentou, confusa.
— Você só está cansada, vamos para casa.
Acompanhada pelo irmão, Bianca entrou no carro e começou a dirigir até em casa. Ela esperava um trajeto tranquilo, sem os contratempos cotidianos do trânsito da cidade grande, mas se deparou com a inesperada atividade do sobrenatural. O faxineiro continuou sua perseguição silenciosa, aparecendo em vários lugares e situações diferentes por onde o carro de Bianca passava. Ele estava em calçadas, varandas, portarias de prédios chiques, na frente de restaurantes, debaixo de toldos e pórticos, e até mesmo no meio da rua. Não estava correndo ou se locomovendo de qualquer maneira, simplesmente aparecia, se materializando em posições diferentes. Assustada com aquela figura que surgia à sua volta a todo momento, Bianca começa a se desesperar e perder o controle da condução em meio a gritos histéricos.
— O que você tá fazendo!? — Felipe se agarrou no banco ao perceber os constantes ziguezagues que o carro realizava sob o comando descontrolado da irmã.
— Sai daqui! — Ela gritava para as manifestações do faxineiro que a encaravam de todos os lugares.
— Para, Bianca! Assim você vai acabar matando a gente! — Felipe tentou gritar ainda mais alto para libertar a irmã daquele transe, o que não funcionou.
Felipe agarrou o volante, estabilizando a trajetória do veículo. Por um milagre, a citação a morte atingiu Bianca, fazendo-a recobrar a consciência no exato momento em que o sinal de trânsito fechou, freando bruscamente.
— Tá tudo bem? — Felipe perguntou cauteloso, se afastando da irmã e esperando ela se acalmar. Bianca não respondeu, olhando para a frente ela só viu o mesmo faxineiro misterioso a encarando. Furiosa e perturbada, Bianca começou a espancar suas mãos no volante do carro, assustando Felipe. Ele nunca havia visto a irmã assim antes.
Naquela noite, ao voltarem para o apartamento, Felipe e Bianca não fizeram mais nada além de comerem e assistirem televisão em silêncio, debruçados no sofá da sala.
— Desculpa por ter quase te matado hoje cedo — Bianca quebrou o silêncio acreditando que Felipe ainda estaria incomodado com suas ações no trânsito, sem saber que ele nem se lembrava mais — Não sei o que deu em mim, só me assustei com uma coisa.
— O faxineiro?
— Sim — Bianca se encolheu no sofá — Eu te juro! Todo lugar que a gente foi, tudo que a gente fez, ele sempre tava lá, sempre tava por perto.
— Ainda acho que é tudo coisa da sua cabeça — Felipe comentou — Foi um dia emocionante, aconteceu muita coisa, acho que você só está emocionada mesmo, fora da realidade — Ele parou por um momento e olhou em volta — Vai dormir, esfriar a cabeça.
— É, acho que vou mesmo — Bianca se levantou e caminhou em direção ao quarto — Boa noite.
— Boa noite, cuidado para o faxineiro não te pegar — Felipe disse com um sorriso sacana no rosto.
— Cala a boca!
Em seguida, Felipe também se retirou ao seu quarto novo. Deitado na cama ele encontrou-se na mesma situação em que Bianca estava na noite anterior, e secretamente nessa noite. O sono não vinha, permitindo-o apenas observar as sombras noturnas dançando nas paredes do quarto, acomodado em seus lençóis. No auge da madrugada, Felipe ouviu um barulho na sala e foi até lá, onde encontrou mais um faxineiro.
Assim como todos os outros, esse estava com o carrinho de limpeza e seu material, mas não limpava nada, estava parado e em silêncio como uma estátua. Mesmo na penumbra Felipe sabia que o faxineiro lhe encarava.
— O que você está fazendo aqui? — Felipe falou como se alertasse a um cúmplice de um crime sobre uma ação indesejada — Ainda é cedo, eu preciso de mais tempo.
O faxineiro nada respondeu.
— Mais tempo para o quê? — Bianca perguntou enquanto adentrava na sala. Ao avistar o faxineiro o seu sangue gelou e seu corpo se paralisou como se ela encarasse a pior de todas as suas fobias. Num impulso, ela caminhou apressada rumo a porta do apartamento, mas parou quando o faxineiro lhe estendeu a mão num gesto tranquilizador. Todo o apartamento foi tomado por uma aura rosada e luminosa.
— Não temam — O faxineiro finalmente falou — É hora de ir, minhas crianças.
— Não, ainda é cedo — Bianca falou, dando alguns passos para a frente. — Eu preciso de mais tempo.
— Pera aí — Felipe foi tomado pela confusão — Você...
O silêncio se espalhou pela sala. Bianca não foi capaz de falar ou fazer nada além de desabar no sofá e chorar, com Felipe sentado do seu lado a abraçando.
— Bianca Oliveira de Morais — O faxineiro disse, por fim — Morta na queda do avião quando voltava de viagem com sua namorada Mary.
A televisão se ligou sozinha, mostrando uma foto de Bianca estampada numa reportagem sobre o acidente aéreo. Felipe ficou chocado com aquela revelação, alternando seu olhar silencioso entre a tela da televisão e sua irmã, que continuava encolhida e chorando.
— Felipe Oliveira de Souza — O faxineiro prosseguiu — Esfaqueado na sua última noite na prisão.
As palavras do faxineiro chamaram a atenção de Bianca, que encarou o irmão com incredulidade. O peso daquelas afirmações os atingiu em cheio, inundando seus corpos com uma emoção indescritível de choque e negação da realidade. As pessoas que eles mais amavam no mundo estavam mortas, mas ao mesmo tempo estavam ali, um diante do outro, carregando sentimentos proibidos aos vivos e que só se revelam após o desencarne. Mas o laço familiar ainda os unia, lhes embalando com o mais puro e subestimado de todos os amores, agora cada vez mais forte mediante a ameaça da separação.
A figura do faxineiro continuava um mistério por ser essencialmente humano, muito diferente da imagem sombria e esquelética associada ao anjo da morte.
— Eles me pegaram no último minuto. Aquele riquinho nunca quis me ver solto — Felipe comentou cabisbaixo — Acho que aquelas ligações que você ignorou eram de alguém vindo te avisar.
— Duas almas tão próximas que dividem o mesmo desejo de terem mais tempo para passarem juntos antes da passagem. — O faxineiro falou — Tão parecidos que dividem até o mesmo medo.
— Eu tive medo de nunca mais te ver do outro lado — Felipe disse — De esquecer que já tive uma irmã em vida.
— Eu também, acho que não vamos para o mesmo lugar. Nenhum de nós foi uma pessoa realmente boa — Bianca enxugou as lágrimas e encarou seu irmão com determinação — Felipe, vai embora! Você já sofreu demais, passou por muita coisa! Você merece descansar em paz!
— Não, você também sofreu — Felipe contestou a irmã, segurando suas mãos — Como eu poderia descansar em paz sabendo que você ainda está sofrendo?
— E como eu poderia!? — Eles se encararam e permaneceram em silêncio com as mãos dadas, acreditando que essa seria última vez que eles se veriam e fazendo de tudo para se afastar do inevitável. O faxineiro permaneceu em silêncio, os observando com olhares compadecidos que misturam admiração com preocupação — Vamos fazer assim — Bianca sugeriu após o momento silencioso — Vamos juntos, o que acontecer até lá não vai importar, porque o nosso amor sempre vai ser mais forte.
— Sim — Pela primeira vez as lágrimas surgiram no rosto de Felipe — Não importa onde eu estiver, eu sempre vou te amar.
— Eu também sempre vou te amar — Eles deram as mãos para o faxineiro e se levantaram do sofá, se abraçando pela última vez antes de deixarem o plano físico rumo ao reino dos mortos.
— A eternidade tem seus mistérios — O faxineiro revelou sua verdadeira forma, uma esfera perfeita, luminosa e recoberta com diversos pares de asas angelicais que batiam em padrões aleatórios como num festival de pássaros místicos.
Uma luz ofuscante preencheu o apartamento, levando-os rumo aos portões do paraíso.