Capítulo 22

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Setembro já se acabara, com seu rude calor e sua aflita miséria; e outubro chegou, com São Francisco e sua procissão sem fim, composta quase toda de retirantes, que arrastavam as pernas descarnadas, os ventres imensos, os farrapos imundos, atrás do pálio rico do bispo, e da longa teoria de frades a entoarem em belas vozes a canção em louvor do santo: Cheio de amor, cheio de amor! as chagas trazes do Redentor!

E no andor, hirto, com as mãos laivadas de roxo, os pés chagados aparecendo sob o burel, São Francisco passeou por toda a cidade, com os olhos de louça fitos no céu, sem parecer cuidar da infinita miséria que o cercava e implorava sua graça, sem nem ao menos ensaiar um gesto de bênção, porque suas mãos, onde os pregos de Nosso Senhor deixaram a marca, ocupavam-se em segurar um crucifixo preto e um grande ramo de rosas.

E novembro entrou, mais seco e mais miserável, afiando mais fina, talvez por ser o mês de finados, a imensa foice da morte.

Sentada na espreguiçadeira da sala, Conceição lia, com os olhos escuros intensamente absorvidos na brochura de capa berrante.

Na paz daquela manhã de domingo, um silêncio doce tudo envolvia, e algum ruído que soava logo era abafado na calma sonolenta.

Maciamente, num passo resvalado de sombra, Dona Inácia entrou, de volta da igreja, com seu rosário de grandes contas pretas pendurado no braço. Conceição só a viu quando o ferrolho rangeu, abrindo:

- já de volta, Mãe Nácia?

- E você sem largar esse livro! Até em hora de missa! A moça fechou o livro, rindo: - Lá vem Mãe Nácia com briga! Não é domingo? Estou descansando. Dona Inácia tomou o volume das mãos da neta e olhou o título:

- E esses livros prestam para moça ler, Conceição? No meu tempo, moça só lia romance que o padre mandava... Conceição riu de novo:

- Isso não é romance, Mãe Nácia. Você não está vendo? É um livro sério, de estudo...

- De que trata? Você sabe que eu não entendo francês... Conceição, ante aquela ouvinte inesperada, tentou fazer uma síntese do tema da obra, procurando ingenuamente encaminhar a avó para suas tais idéias:

- Trata da questão feminina, da situação da mulher na sociedade, dos direitos maternais, do problema...

Dona Inácia juntou as mãos, aflita:

- E minha filha, para que uma moça precisa saber disso? Você quererá ser doutora, dar para escrever livros? Novamente o riso da moça soou:

- Qual o quê, Mãe Nácia! Leio para aprender, para me documentar..

- E só para isso, você vive queimando os olhos, emagrecendo... Lendo essas tolices...

- Mãe Nácia, quando a gente renuncia a certas obrigações, casa, filhos, família, tem que arranjar

outras coisas com que se preocupe... Senão a vida fica vazia demais...

- E para que você torceu sua natureza? Por que não se casa? Conceição olhou a avó de revés, maliciosa:

- Nunca achei quem valesse a pena...

Dona Inácia foi saindo da sala, para guardar o manual e o terço:

- Moça que pega a escolher muito acaba ficando na peça... Conceição reabriu o livro - pô-lo sobre

os joelhos. Com os braços erguidos, recompÔS os cabelos soltos que já lhe invadiam o rosto, sacudidos pelo vento que entrava através da rótula aberta.

Pensava: “para evitar o excessivo desamparo, A gente precisa criar seu ambiente, Suas idéias, suas reformas, seu apostolado... Embora nunca os realize... nem sequer os tente... mas ao menos os projete, e mentalmente os edifique...” Lá de dentro, Dona Inácia gritou:

- Conceição! o Manuel está brincando perto da cacimba.

A moça levantou-se aflita; correu ao quintalzinho acanhado, onde um poço, dividido pelo muro,

abria a meia cara.

- Duquinha! Ande para casa! Seu cabrito! Se cair na

cacimba, morre! Eu já não disse?! Afobado o menino veio, apressado e tímido, reunindo rapidamente

numa lata uns carretéis vazios e uma bruxa de pano. Chegou-se a Conceição, levantou para ela os olhos, que ainda não tinham perdido de todo o ar de espanto e medo.

- Ande brincar na sala, junto da madrinha!

E a moça entrou pelo corredor, seguindo a criança, que ia à frente, no seu passinho incerto, os pés

muito grandes,

as pernas ainda muito finas, mal disfarçada, sob a camisinha asseada, a marca das privações sofridas.

- No cantinho, ali... Brinque direitinho... Tome uma figura...

O pequeno estendeu a mão para o reclame de dentifrício com que a Conceição mareava o livro. Na

gravura, uma moça ria, mostrando uns dentes alvíssimos.

Gravemente Duquinha a fitou, num esforço de compreensão. Depois, riu-se, parecendo reconhecer alguém na figura:

- Ah! a Badinha! Oi! a Badinha!

Entusiasmado, agarrava com mais força o cartão, machucava-o, esfregava nele a ponta do dedo, na

alegria de sua descoberta:

- A Badínha! A Badínha. Conceição quis reencetar a leitura:

- Pois sim! Vá-se sentar. E brinque caladinho que a Badinha quer ler.

Mergulhou os olhos no livro; as letras negras clamavam: ”E a eterna escrava vive insulada no seu

próprio ambiente, sentindo sempre que carece de qualquer coisa superior e nova...” Conceição murmurou:

- o seu ambiente...

Circunvagou os olhos pela sala, pelos quartos, a mesa cheia de livros, fixou-os em Duquinha que

sentado no chão fazia a bruxa cavalgar a lata...

- É preciso criar seu ambiente... e até no meu, brinca uma criança... Depois, encolhendo os ombros:

- É tão complexo, isso de ambiente... Afinal... Mas sei lá!...

O quinze - Rachel de QueirozOnde histórias criam vida. Descubra agora