Nenhuma criança pede para nascer, e isso não foi diferente para Flora Partié.
Exceto que os deuses a pediram que viesse a Terra. Ela era um presente e uma esperança.
Flora foi tratada a vida inteira como a escolhida.
Mas a verdade, é que ela só foi encontrada.
No lugar certo, na hora certa. Quando a noite visitou o dia no centro do céu. Ela era a nascida do meio-dia e da meia-noite. Um ponto de intercessão e equilíbrio entre as magias fundamentais. Um ponto final em seu próprio destino, que ela decidiu transformar em um ponto de interrogação acerca do seu futuro.
Nos corredores do Monastério de Olmadia que aprendeu a chamar de lar, ela aprendeu que ao correr mais rápido que as pernas pelas ricas e verdes colinas, a terra poderia clamar seu corpo, deixando marcas nos seus joelhos e cotovelos. Flora nunca chorava de dor, e assim que seus ferimentos começavam a se curar, ela voltava a correr.
Havia algo selvagem na forma que a magia corria nas suas veias. Um chamado natural, espontâneo, quase debochado. Assim como ela. Por vezes sua magia provocava acidentes inusitados: a cobria em graxa, transformava cabelo em penas e grama em menta.
Flora era, assim como a própria magia, um ser efervescente. Seus cabelos brancos eram como a lua, seus olhos dourados, como o sol. Afinal, ela era a filha do eclipse, e apesar de ter sido tirada de sua família, via nos astros seu pai e mãe.
Nunca lhe faltou amor; em cada sacerdote ela encontrava um sorriso, um ensinamento, um conselho. Exceto na Grã-Sacerdotiza, que mantinha sua influência fria e afastada. A poderosa feiticeira revirava os olhos e a repreendia a cada surto de magia. Como se o descontrole fosse culpa de Flora. Como se não pudesse entender a natureza que corria em suas veias.
Apesar das horas de aulas e práticas diárias, Flora não conseguia evitar alguns efeitos colaterais. As vezes seus cabelos se assemelhavam a penas após um surto de euforia. As vezes ela flutuava. Teve uma vez em que o cozinheiro ganhou uma cauda, o que a privou do direito da sobremesa por uma semana.
Mesmo com seus feitiços fugindo do seu controle e compreensão, ela sentia a magia correr nas suas veias da mesma forma que sentia seu peito pulsar durante uma corrida. Ela não podia fazer nada além de amar essa corrente selvagem que insistia fluir por ela. Aos poucos ela aprendeu a dobrá-la a sua vontade, como se fizesse um acordo interno, mesmo que as vezes saísse do controle.
Seus guardiões diziam que ela deveria aprender a ser mais cautelosa. Ela prometia que sim, na certeza de que na próxima oportunidade quebraria seu voto. Pensava silenciosamente que ela tinha aprendido que depois de se machucar, ela sobreviveria. E como tinha sido abençoada pelos deuses, certamente eles não a levariam da Terra antes do tempo certo.Ela só não esperava que o tal "tempo certo" estava chegando. Flora jamais imaginaria que as mesmas mãos que trançavam seus longos cabelos brancos, que se estendiam para que se levantasse quando caia, também seria aquela que estava disposta a amarrá-la no ritual do Equinócio da primavera. E oferecê-la de volta aos deuses, gratos pela dádiva de criá-la.
No próximo eclipse, Flora completaria seus 19 anos. E seria mais uma vez bem vinda no paraíso, enquanto a Terra receberia a sua poderosa energia, que acontece quando um ser mágico atravessa os planos cruzando o portal entre os vivos e mortos.
Exceto que ela não voltaria.
Ao saber tal plano de sacrifício, Flora caminhou pelos largos e altos corredores do monastério. De repente ela se sentia sufocada, como se pudessem cair em cima dela a qualquer momento. Seus pés decidiram o caminho por ela, e como se por puro instinto ela chegou até Dan. Seu guarda pessoal favorito.
Ele a beijou com afinco assim que a viu, e desejou não parar de beijá-la depois que ouviu o que a jovem havia descoberto. Seus dias estavam contados. Ele a amava e havia jurado protegê-la. Assim o fez.
Na lua nova, quando a noite estava mais escura, ele a escoltou até a fronteira de Firie, o mais longe do monastério que poderia. Deixou com ela suas armas, um mapa e seu coração. A promessa silenciosa de que se veriam novamente, nenhum dos dois ousou dizer em voz alta, temendo desafiar os Deuses enquanto desafiavam Seus próprios planos.
Uma vida perdida para que milhares fossem salvas. Se Flora fosse morta, milhares morreriam.
Flora sabia que Dan morreria ao voltar, mas pediu ao céu da meia noite, que era feito da mesma matéria que ela, que o protegesse. E se apressou, na certeza que também sobreviveria a essa corrida.
Deixou o destino que herdou no berço para trás, em busca de uma nova vida. Ela iria renascer assim como toda a flora se renovava na primavera.