Prólogo

15.7K 814 214
                                    

Ano de 2015.

Erick

Olho-me no espelho e vejo cabelos brancos emoldurarem meu rosto. Solto um sorriso fraco ao constatar quanta e que tipo de experiência, carrego nas costas. Faz seis anos que saí da prisão e desde então Yuri e eu nos mudamos para o estado do Rio de Janeiro. Moramos numa cidade praiana chamada Apoema. É uma cidadezinha pacata com um pouco mais de quinze mil habitantes onde todo mundo conhece todo mundo, mas nos fins de semana fica cheia de turistas em buscas das belezas naturais da região.

Com a morte da Tia Dulce, Yuri e eu herdamos sua casa e quando conquistei novamente a liberdade, pude pensar em montar nosso próprio negócio. Junto com Juliana e seu esposo, montamos uma pequena pousada e anos depois um simpático barzinho. O negócio é pequeno, mas é muito bem frequentado e temos tido uma vida próspera e digna. Yuri passou no vestibular para odontologia em Macaé e só vem para cá nos fins de semana. Ele concluirá o curso no fim do ano e sinto-me orgulhoso por poder montar seu consultório aqui na cidade. Ainda é surpresa, mas sei que ele ficará muito feliz.

Às vezes lembro de Thiago e penso que ele poderia está vivendo isso tudo com a gente se não tivesse preferido continuar seguindo pelo caminho errado. Meu irmão faleceu numa troca de tiros com a polícia logo após a minha prisão. Ele preferiu morrer do que se entregar. Mas uma vez foi incapaz de pensar em seu filho, que na época tinha apenas oito anos e já era órfão de mãe.

Graças à ajuda de Juliana e do Dr. Otávio Schneider, minha tia teve um fim de vida decente e Yuri foi bem cuidado durante o período em que estive ausente. Ju foi muito mais do que uma amiga. Ela permaneceu do meu lado em todos os momentos. Quando Tia Dulce morreu, entrou com o pedido de guarda provisória do garoto e agora é oficialmente mãe dele. Dá gosto de vê como eles se amam e são companheiros. Isso contribuiu bastante para que eu aceitasse sua proposta de sociedade assim que saí da cadeia. Juliana sabe do amor que sinto por meu sobrinho e, além disso, ele o único parente que tenho vivo. Ela sabe que eu nunca o deixaria novamente, por isso vim com eles.

Quase morri de felicidade quando Yuri me chamou de pai pela primeira vez. Foi tão espontâneo e acho até que não percebeu, mas naquele momento me senti o cara mais sortudo do mundo.

Ju casou há mais de cinco anos e foi com muita honra que aceitei ser seu padrinho de casamento. Ela merecia encontrar alguém que a amasse de verdade e pudesse fazê-la feliz. Beto faz disso seu objetivo diário e acho que tem conseguido. O cara é tão gente boa que nem liga por Yuri me chamar de pai e Juliana de mãe. É um tanto estranho, mas todos a nossa volta já se acostumaram com a ideia.

Logo depois daquele beijo armado que Luísa presenciou lá no presídio, Juliana ainda tentou uma aproximação maior entre nós dois, mas deixei claro que aquilo tinha acontecido apenas para afastar aquela ruiva da minha vida.

Luísa! Há quanto tempo não a vejo e nem sequer ouço falar em seu nome. A última notícia que tive foi quando li em um jornal que ela assumiu a função da irmã no hospital de sua família. Parece que hoje é uma médica respeitada em todo o país. Olhando assim percebo que meu esforço rendeu bons frutos.

Apesar de eu ter destruído todas as chances de ser feliz algum dia, sei que fiz a escolha correta. Todas as pessoas que amo seguiram suas vidas e hoje estão bem e realizadas.

Dr. Otávio tinha razão; não era justo manter sua filha ligada a mim durante o tempo em que estive preso. Ela teria perdido sua juventude ao meu lado esperando por alguém que estava em uma espécie de sobrevida. Ou quem sabe perceberia a tempo que eu não era o cara certo me abandonaria. Celas sujas, visitas íntimas e o ambiente deprimente de um presídio não combinavam com ela. Luísa era uma princesa e merecia ser tratada como tal.

Durante todos esses anos lembrei-me de tudo o que aconteceu entre nós. Desde o dia que a conheci naquele cativeiro ao momento em que fui preso em sua casa.

Amarguei nove anos de prisão, pagando pena por ter participado do seu sequestro, mas ainda repito que não me arrependo de nada. Se aquilo tudo não tivesse acontecido provavelmente eu não teria vivido o grande amor da minha vida.

Quando concordei em repeli-la, senti que uma parte de mim estava morrendo; sendo deixada para trás. Morri para dá vida aos que amo. Se eu não tivesse agido daquela forma, Tia Dulce teria ficado sem os cuidados especiais dos quais necessitava para se manter viva, Yuri teria sido entregue para a adoção e Luísa teria continuado distante de sua família, nutrindo uma mágoa sem propósito algum.

Entendo que ela quisesse me proteger e não me vê preso, mas também entendi perfeitamente a posição dos Schneider; como eles poderiam permitir que Luísa namorasse seu próprio sequestrador? Se pelo menos eles não tivessem descoberto minha identidade... Será que teríamos conseguido manter esse segredo até hoje? Será que ela ainda me amaria como há quinze anos? Será que ainda lembra de mim? Será que casou, tem filhos ou continua como eu?

Apesar de sempre ter alguém na fita, nunca consegui me firmar com ninguém. É como se eu comparasse todas as outras mulheres a ela. O gosto do beijo, o cheiro, a textura da pele e do cabelo... Tudo! Parece loucura, mas aquele sentimento ainda queima dentro de mim. Às vezes fecho os olhos e consigo lembrar dos mínimos detalhes da nossa paixão. De certa forma acredito que isso foi o que me manteve vivo durante todos esses anos, além do amor de Yuri, claro.

Já perdi a conta de quantas vezes pensei em procura-la, mas por covardia, desisti. Tenho medo, muito medo. Medo de encontrá-la feliz ao lado de outra pessoa, medo de descobrir que ela já não pensa mais em mim, medo de saber que aquele amor todo que dizia sentir se transformou em ódio, mágoa ou quem sabe até em indiferença. Tenho medo de encarar a doçura do seu olhar e perceber que minha decisão não teve volta. Encontrá-la mesmo depois de tanto tempo seria uma tortura sem fim. Prefiro pagar minha penitência fingindo que superei; que sou realizado e feliz com essa nova vida que estou conquistando.

O sucesso dos negócios têm sido minha tábua de apoio nesses últimos anos. Hoje levo uma vida pacata e sou bem visto na cidade, ninguém sabe ou sequer desconfia do meu passado. Aqui tenho boa reputação e posso fingir que não guardo lembranças tão sofridas.

Quando penso que Yuri acabou sabendo da vida que Thiago e eu levamos um dia, sinto uma vergonha excruciante. Procurávamos ser discretos e não deixar que o garoto percebesse nada, mas quando a bomba estourou; fui preso e Thiago morreu logo em seguida, não restando alternativa à Juliana que não fosse abrir o jogo com o garoto.

Lembro-me bem da sua decepção, do seu choro compulsivo quando foi me visitar pela primeira vez na cadeia. Naquele dia cheguei a pensar que a admiração que ele sentia por mim tinha morrido, mas aos poucos, domingo após domingo, fui ganhando sua confiança de volta e Graças a Deus nossa relação voltou a ser a mesma de antes.

Na época, ele só não concordou com o meu afastamento de Luísa. Apesar de ter apenas oito anos, o moleque era muito perspicaz e sacou todo o amor que minha ruiva e eu sentíamos, mas ainda era muito pequeno para entender que, para que ele e minha tia tivessem uma vida decente enquanto eu estivesse longe, eu teria que abrir mão da mulher da minha vida. Esse detalhe ninguém nunca soube; é um segredo meu, de Juliana e do Dr. Otávio Schneider.

Feridas abertas de um coração partido (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora