- Hora de dormir, pequena – falei ao entrar no pequeno quarto lilás.
- Só se tiver historinha, mamãe - me respondeu uma voz fina, vinda da cama.
- Quanta chantagem, mas tudo bem. Desde que seja apenas uma história - disse enquanto me ajeitava sob a grossa coberta de nuvem. - Sobre o que quer ouvir?
- Sobre esse machucado no seu braço - me respondeu animada e eu simplesmente não pude negar.
-Então tá. A história é assim...
"Em um lugar bem distante daqui, cercado por árvores, havia uma torre muito alta. Lá vivia uma jovem chamada Suri, juntamente com seus pais. Infelizmente, o pai de Suri era um homem muito rígido e não a deixava sair de casa em hipótese alguma, nem mesmo para colher algumas dálias que cresciam logo abaixo da janela de seu quarto. Então a única distração da menina nos longos e intermináveis dias era lendo os livros que lhe eram trazidos.
Cansada de tanto ouvir o pai lhe dizendo que só sairia da torre quando um nobre cavalheiro fosse lhe pedir em casamento, Suri decidiu fugir de casa, mas para isso precisava, além de encontrar a chave da porta, passar pelo gnomo que protegia o portão com a própria vida. Graças às receitas da mãe, que as vezes pareciam feitiços, a moça sabia como conseguir tal feito. Um dia antes de sua fuga, cozinhou uma enorme tigela de chuchu e, antes de ir para o quarto, ferveu leite com canela. Na calada da noite, a moça colocou o plano em ação e, após descer as longas escadarias e passar pela porta, ofereceu a refeição ao gnomo, que adormeceu como num passe de mágica. Suri deixou um bilhete dizendo "Chegou meu momento de viver".
Não muito longe, encontrou com um circo deixando o reino que ela mal conhecia e indo para um destino longe e incerto, o que parecia perfeito. Mal tivera tempo de apreciar o mundo exterior quando foi descoberta entre emaranhados de tecidos, mas ler escondida os livros que o pai proibia teve algum efeito positivo. Suri possuía conhecimento suficiente sobre o manuseio de uma espada e conseguiu seguir com o circo, fazendo apresentações de esgrima com mais dois espadachins, que lhe ensinaram movimentos de ataque e de defesa. Para não ser reconhecida, era chamada de "Kelly, a espadachim mascarada".
Após muito tempo nessa vida, aproveitando o máximo possível de luz solar, a maciez da terra sob os pés e bem longe dos pais, Suri decidiu deixar o circo e conseguiu um emprego como tutora de esgrima em uma casa do reino mais próximo da pequena cabana que vivia. Certo dia, voltando para casa enquanto apreciava o canto dos pássaros, ouviu algo fora do comum. Seguindo o som, se aproximou de um canteiro de rosas e encontrou um cesto, o barulho era do choro de um neném, ou melhor, uma menina de aproximadamente 1 ano. Ela acalmou a criança e esperou para ver se alguém apareceria, mas nada aconteceu, então decidiu levá-la junto para casa.
Passaram-se dias e Suri se apegou à menina, que batizou de Rubi, e o sentimento foi recíproco. Em determinada tarde, enquanto ajeitava o pequeno lar, Suri ouviu o som de cascos se aproximando e soube imediatamente que era a guarda real. Os centauros haviam recebido uma denúncia de que lá naquele lugar havia uma criança vivendo em péssimas condições. Suri olhou para o rosto redondo de sua protegida e só não deu risada porque, em menos de um segundo, a pequena Rubi estava sendo levada para longe, aos prantos.
Desesperada e sem saber o que fazer, Suri seguiu os centauros até um pequeno orfanato, caindo aos pedaços, e se arrastou até uma pequena janela, acompanhando os gritos de Rubi, que foi trancada em um quarto minúsculo e pouco iluminado. A moça até tentou pedir ajuda, mas todos com quem falou eram irredutíveis e lhe viraram as costas. Todos os dias ia escondida até a janela do pequeno cômodo e, todos os dias, após ver como a pequena criança estava sofrendo, voltava para casa totalmente abatida e com o choro preso na garganta.
Certa tarde Suri saiu mais cedo do serviço e percebeu que a megera dona do orfanato havia saído, então aproveitou a deixa e entrou para tentar ao menos ver Rubi. A primeira constatação era de que o lugar tinha cheiro de fumaça e, ao chegar na cozinha, não viu apenas panelas e condimentos, mas poções de diversas cores e sobre a mesa um livro aberto. Um pouco relutante, Suri se aproximou para ler e ficou desesperada. Precisava resgatar a menina o quanto antes. Saiu correndo e tentou, de todas as maneiras possíveis, abrir a porta que aprisionava Rubi. O desespero aumentou quando ouviu a porta da frente se abrir e passos ecoarem pelo corredor. A aparência frágil da megera proprietária escondia uma força absurda, que foi capaz de erguer Suri do chão com uma única mão, cravando-lhe as unhas na pele. Ao ser arremessada para fora da construção, pensou ter visto fumaça saindo das narinas da mulher.
Suri deixou que toda angustia e tristeza explodissem antes mesmo de chegar à pequena cabana, que agora parecia gigante, já que estava sozinha, e sentiu algo escorrendo pelo braço. Sangue. O braço que fora agarrado possuía uma ferida comprida e profunda, que expelia tranquilamente o líquido vermelho. Vermelho. Rubi. Suri sentiu as forças se esvaindo pouco a pouco e a última coisa que viu antes de desmaiar foi uma luz verde se aproximando.
Suri acordou em sua cabana com um curativo de folhas no braço e descobriu que a misteriosa luz verde era uma Dríade. A ninfa contou que tinha despertado de seu sono com o barulho estridente de choro e que ao sair de sua árvore para ver do que se tratava, encontrou Suri sangrando no chão. A moça contou à ninfa sobre o livro que encontrou e que se não resgatasse Rubi aquele seria o fim da pequena garota. O feitiço consistia em transformar a criança em rato, tomando-lhe assim todos os anos que teria pela frente, garantindo energia e juventude para quem tomasse a poção. A ninfa ficou horrorizada e prometeu ajudar Suri na missão de resgate, mas precisaria de algumas horas para despertar uma magia que provavelmente ajudaria.
Assim, logo ao nascer do sol do dia seguinte, não estava Suri, mas sim seu alter ego, Kelly, empunhando sua espada em frente ao que todos diziam ser um orfanato, determinada a acabar com tudo aquilo.
A feiticeira riu ao vê-la sozinha, mas parou assim que percebeu a ninfa se aproximar e parar ao lado de Suri. Seu riso virou uma careta de ódio e fumaça começou a sair pelas orelhas. Aquilo definitivamente não era um bom sinal. Sem mais nem menos, a mulher se transformou em um dragão e avançou contra Suri, cuspindo-lhe fogo. A moça desviou e assim se iniciou a batalha entre as duas. Enquanto a ação acontecia do lado de fora, a ninfa se esforçava em quebrar o feitiço da porta para libertar Rubi.
Suri estava exausta e cheirando fumaça, mas também tinha conseguido enfraquecer a adversária, que ficava mais fraca quando assumia a forma humana. Tamanho foi o seu alívio ao ver a pequena criança liberta, do lado de fora, mas esse também foi seu erro. Suri baixou a guarda e a megera mulher lhe cravou a mão no corte do braço que estava longe de cicatrizar, fazendo a moça esmorecer por um instante. E esse mísero momento foi capaz de mudar completamente a situação.
Suri tremia de dor, mas ainda assim conseguiu ver pelo canto do olho a ninfa ser capturada por uma rede e a pequena Rubi ser agarrada pela feiticeira, que tinha conseguido recuperar a forma de dragão, e estava prestes a arrancar o coraçãozinho da criança com as unhas. Suri gritou e como resposta a natureza rugiu. Ouviu-se o barulho dos pássaros se aproximando, as asas cortando o ar com força. A moça não entendeu, até ver o pequeno botão de rosa preso à roupa, emanando um intenso brilho verde. Aquela era a magia adormecida. Suri sentia que podia contatar cada animal ali presente. Aquele era o momento decisivo, sua chance final. Não poderia falhar.
As aves investiram contra o dragão, que deixou Rubi escorregar. Aquilo não fazia parte do plano. Num ato de desespero, Suri arremessou os objetos que possuía em mãos. O botão alcançou a pequena criança e a circundou com sua luz verde, descendo calma e seguramente até o solo, com um manto de pétalas vermelhas. A espada seguiu por um caminho sem curvas, com um único alvo. O dragão foi atingido no coração. Quem despencou foi a feiticeira, Mas o que chegou ao solo foi apenas um punhado de carvão que a ninfa, que conseguiu se livrar da rede, logo deu um jeito de transformar em uma huernia keniensis. Assim, a magia limpa e pura da natureza impediria que o mal ressurgisse.
Suri correu ao encontro de Rubi, que sorriu ao vê-la e estendeu os bracinhos dizendo "Mamãe! Mamãe!". Suri abraçou a filha que a vida lhe dera e prometeu nunca mais deixar que mal algum chegasse perto."
- E foi assim que tudo aconteceu. – sussurrei – Bons sonhos minha pequena.
~ fim ~
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E foi assim que aconteceu...
Short StoryQuem disse que só o príncipe pode salvar o dia e que é o único capaz de atos heróicos? Quem disse que a mocinha precisa esperar sentada? Aqui isso não acontece! Um conto para rápido para aquecer o coração.