— Você não precisa de direitos.
— O que?
— Só precisa do Amor.
— Ah, sim, mas o direito ao voto...
— Amor!
— E o Amor vai me dar direitos?
— O Amor é tudo o que você precisa ter...
Ele fala enquanto as alças das sacolas plásticas se fincam na palma da minha mão. Já vi ele aqui antes, distribuindo folhetos coloridos sobre como ser mais dócil e amorosa e me pergunto como pode existir uma impressora tão potente.
A impressão em preto e branco do jornal da banca do Seu Adolino era a única conhecida antes.
Eu sei que ele é um Pacificador da zona norte da cidade, onde usam bastante gel no cabelo, e também sei que lá eles expulsam os monstros com o amor e a paz interior.
Ou pelo menos é o que eles dizem.
Nos últimos anos os ataques de lobisomens têm aumentado muito na cidade, mesmo sem lua cheia, e a polícia não intervêm. "São lobisomens, existem a séculos", eles dizem, "o que podemos fazer contra a natureza?" Troco as sacolas de mão e olho para ele.
— Tudo o que eu preciso? Eu preciso não ter medo de andar na rua.
— Então não tenha! Viva o Amor!
— Moço, minha prima foi atacada semana passada. Dois Lobisomens em plena lua minguante. Eu tenho medo, eu preciso lutar para que isso aca...
— Não, nada de luta, a luta não resolve nada. Eu tenho algo que pode saciar a sua alma e é melhor do que tudo isso.
Ele toca meu braço quando diz 'não resolve nada' e percebo que preciso trocar as sacolas de mão mais uma vez. Em geral não preciso trocar de mão tantas vezes enquanto subo a rua, mas hoje consegui comprar duas garrafas de água a mais. Aperto as sacolas.
— A luta, como você diz, salvou a vizinha de ser atacada, ontem mesmo, porque agora temos uma mobilização de...
— Tanto ódio! É uma pena, deveríamos falar sobre o Amor, sobre o que é bom.
— Moço, nós estamos em perigo!
— Você não acha horrível se sentir assim?
— Sim!
— Então por que ainda escolhe esse ódio?
— Porque preciso defender a minha vida e...
— Mas ninguém é contra a sua vida, querida, olha! Todos sabem que é preciso cuidar da sua vida, mas isso não será possível até que se viva o Amor e a paz interior! Essa é a verdadeira transformação!
— E o Amor vai me dar segurança de andar na rua e não ser atacada?
— Bem, se todos sentirmos o Amor, sim!
— Mas os lobisomens não sentem, eles têm instintos que ...
— Mas não é por eles que a transformação começa, é por vocês! - Ele aponta para mim como se eu fosse uma representante do 'vocês'. - Imagine se você sentisse o amor e não fugisse quando se aproximassem... se emanasse paz interior! É o tipo de transformação que não precisa de violência, de quebra-quebra...
— E daí eles me atacariam, como fizeram com a minha prima.
— Mas sentiriam o Amor!
Ele fala mais alto, virando o rosto completamente para mim enquanto passamos na frente de um bar. A televisão ligada anuncia os cinco assassinatos registrados ontem na parte norte. Assassinatos causados por lobisomens, que teoricamente, não existem lá porque o Amor acabou com todos. Respiro fundo.
— A minha prima já tinha ideias amorosas, sabe, e mesmo assim eles...
— Mas eles erram, é assim mesmo, são os instintos deles. A questão é que a mensagem do Amor precisa chegar e ser mais forte! Se for mais forte tudo isso acaba! Essa é a promessa.
— A promessa, entendi.
— É sério, essa é a nossa realidade na parte norte. Será que você não percebe como está perdendo o mais importante?!
— Tudo bem, tudo bem... Mas então porque você não anda comigo de noite, na rua, para emanar o Amor nessa situação de perigo.
— Querida, a minha missão não é aqui na sua rua, eu tenho outros espaços.
— Ah...
— A sua missão é aqui. Então sinta o Amor aqui, e não lute. Isso faz mal.
— Mais mal do que ser atacada?
— Você já entendeu, é inteligente. Uma menina inteligente assim deveria ser um arauto do Amor...
— Arauto, aham... E por que os lobisomens não podem ser os primeiros arautos? Porque não dá folhetos a eles e ....Moço? Moço...?
Olho para os lados, mas nem sinal do cabelo brilhante de gel. Continuo subindo a rua, olhando para baixo, para não provocar os lobisomens.
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Não é Lua Cheia
FantasyNos últimos anos os ataques de lobisomens têm aumentado muito na cidade, mesmo sem lua cheia, e a polícia não intervêm. "São lobisomens, existem a séculos", eles dizem, "o que podemos fazer contra a natureza?" Troco as sacolas de mão e olho para ele.