O Coração do Deserto

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Há muito tempo, há tantas eras atrás que até o nome das coisas foram esquecidos, existia um deserto sem nome feito de cinzas e ossos.

A paisagem era inerte e imutável. Um deserto plano algumas vezes intercalado pela presença de cânions solitários e esparsos demais para serem dignos de nota. As histórias dizem que um dia aquele lugar teve um nome; e que lá ficava o califado mais rico e poderoso do mundo. Nesse império, reis se curvavam ao reconhecer seu brasão, eruditas dos quatro cantos do mundo reuniam-se para consultar seus tomos e mágicos teciam feitiços incríveis na esperança de impressionar o grande imperador.

Porém essas eram só histórias. Hoje os brasões, os tomos, os feitiços e tudo mais assomavam às cinzas daquele deserto imenso. A única coisa poupada da destruição era uma estrada, nada mais que uma vereda tosca serpenteando aquela imensidão pálida. Ao contrário da maioria das estradas, seu propósito era simples e seu curso apontava para o único lugar no mundo que ainda tinha um nome: o Coração do Deserto.

Por séculos o deserto não recebia visitantes. Nada diferente do silêncio e da relva baixa e tímida entre as cinzas. Isso, até um certo beduíno aparecer.

Ninguém sabia quem era essa figura antes dela trilhar aquela estrada. Dizem que era um velho silencioso de pele escura e olhos negros e meditativos. Um homem de expressão inescrutável e enigmática.

E assim esse estranho seguiu, acompanhado apenas de um bastão torto e de intenções não muito claras. Arrastou seus pés entre as cinzas e começou sua jornada.

O beduíno caminhou até o dia tornar-se noite. Escolheu acomodar-se num agrupamento de pedregulhos rodeado por arbustos secos que curvaram-se ao receber uma visita há tanto tempo.

Então, algo incomum aconteceu. Um par de olhos brilhantes flutuavam nas trevas, estudando com curiosidade o viajante. O beduíno lentamente tirou um pires de madeira da sacola que levava e depositou na frente do vulto, servindo um pouco da água do cantil.

Os olhos cintilaram em surpresa. O vulto saiu das sombras cautelosamente, revelando a forma de um coiote negro feito o céu estrelado com um par de olhos prateados faiscantes. A criatura bebeu da água por inteiro.

- Agradeço pela oferenda, viajante - o coiote disse-lhe - Conte-me o que deseja em troca que lhe será cedido.

- Peço que não me faça mal, respeitável coiote - o beduíno tirou a parte de cima do turbante, revelando seu rosto - apenas sirva de companhia para uma conversa.

- O senhor mostrou gentileza a um estranho e eu retribuirei com gentileza - O coiote sentou em suas patas – Diga-me como devo chamá-lo, andarilho.

- Tanto tempo faz que não encontro companhia que já não me lembro mais. Chame-me de Beduíno, caro coiote.

- Que assim seja, Beduíno - o coiote fungou em concordância - Me chamas de Coiote, sou o senhor da desolação deste deserto. Tudo que morre e é esquecido me pertence, Beduíno, inclusive você no dia em que seu corpo for abraçado pela morte e tomado em podridão

- Mas e quanto às nações? Elas nascem, crescem, apodrecem e morrem. Tu és o senhor dos nomes que não são mais sussurrados? Do império que um dia existiu onde estamos e ardeu em chamas até nada restar?"

O Coiote inclinou a cabeça ponderando. A pelagem negra dele refletia a luz do fogo.

- É possível devorar algumas dessas coisas? - O Beduíno balançou a cabeça - Que irritante. Gostaria de poder provar das coisas que os homens se esquecem.

A conversa com o Coiote se alongou pela noite. Ele era um ser simples, amante da podridão e dos sabores exóticos dos interiores dos animais que encontravam o fim. Talvez ele fosse a própria podridão e miasma que habitavam o deserto, mas que agora encontrava-se entediado frente a paisagem imutável e a falta de homens e animais para devorar.

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⏰ Última atualização: Jul 19, 2021 ⏰

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