Nanquim

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Ela era apenas uma criança, como todas as outras, correndo pelas ruas da vila onde morava segurando sua boneca de pano, confeccionada pelas mãos habilidosas da mãe, exibindo para suas amiguinhas que seu artefato era o mais belo de todas. Seu riso contagiante de criança soava como o canto dos pássaros quando chegava aos ouvidos dos moradores e sua feição graciosa ganhava a atenção de qualquer um que passasse perto dela ou até a visse de longe, já que era impossível não reconhecê-la. A menina parecia ter sido esculpida delicadamente a dedo pelo artista mais talentoso que alguém pôde contemplar, ou saído de alguma pintura angelical tão bem desenhada, que o pintor não quis revelar sua obra de arte por puro egoísmo, para que somente ele pudesse olhar para aquela menina tão deslumbrante que acabara de ganhar vida em sua tela, com o brilho do sol em seus cabelos, a intensidade do mar em seus olhos e a beleza de um dia nevado em sua pele.

Era isso que ele era, o pintor egoísta cobiçando um quadro que nem era seu.

Era um dia florido de primavera, e a mesma menina, protagonista do primeiro parágrafo, seguia cantando alegremente conforme colhia algumas flores e as depositava em sua cestinha entrançada, extraída de um vimeiro. Aquele campo era tão belo que enchia seus olhos, olhando atentamente cada detalhe daquela paisagem tão encantadora. Estava prestes a ir embora para casa sob o mandado de sua mãe, quando distraiu o foco de seus olhos para uma magnífica borboleta que acabara de entrar em seu campo de visão, voando sutilmente de flor em flor, fazendo uma rota completamente diferente. E a menina seguia em seu encalce, acompanhando cada voo que o inseto fazia, levando-a para mais perto do dia em que o mundo não teria mais o prazer em ouvir a doçura de sua voz ou observar cada detalhe de sua formosura, cada vez mais para o escuro, desaparecendo.

Ela sentia-se tão hipnotizada pela beleza daquela magnífica borboleta que quando caiu em si, estava em um lugar distinto ao anterior. O que era para ser um campo florido deslumbrante transformou-se em uma floresta escura e sombria, de modo que as folhas das árvores cobriam qualquer passagem de luz pelo sol. Aquele lugar era tão lôbrego, que a borboleta ocultou-se em meio àquelas folhas escurecidas, deixando o perímetro visual da criança, visto que suas asas possuíam a mesma tonalidade das plantas. Ela encontrava-se completamente sozinha, sem saber aonde estava, como voltar para casa ou o que faria em seguida, à mercê dos perigos que arvoredos provocavam às crianças perdidas e indefesas.

Ela estava seguindo os passos que o pintor individualista havia planejado a tanto tempo, perfeitamente, como em uma de suas telas. E ela não era e nem seria a primeira.

Sua obsessão por ela havia se iniciado há muito tempo, quando seus olhos escuros encontraram aquelas orbes azuladas tão inocentes ao se aproximar dele, curiosa sobre o paradeiro de sua boneca de pano, obra da inveja de suas amigas. A partir de então, seu fascínio doentio pela menina crescia rapidamente, e os dias pareciam eternos até a chegada do dia em que o mundo não teria mais o prazer em ouvir o canto dos pássaros sair de seus lábios rosados ou apreciar a alegria do sol refletida nas ondas em seus olhos.

Foi ele que, para chamar a atenção dela, soltou uma de suas borboletas aprisionadas, uma ajudinha na inspiração de seus quadros, com o intuito de atraí-la para aquele lugar obscuro que ele gentilmente chamava de 'casa'. E ela caiu em sua armadilha tão facilmente quanto um animal que estava sendo perseguido pelo seu caçador, conforme observava seus passos atrás dos troncos robustos das árvores, impedindo que a menina o visse, com um sorriso perverso tomando conta de todo o seu rosto. Ah, faltava tão pouco.

Ele caminhava sorrateiramente entre as árvores, aproximando-se vagarosamente atrás da criança, sem perder o foco, chegando cada vez mais perto, bem perto, sendo capaz de ouvir a respiração acelerada da menina. Pegou!

Sua mão manchada de tinta cobriu a boca e o nariz, impedindo-a de gritar por socorro ou ter forças para isso, já que suas vias respiratórias estavam cobertas de nanquim. O pintor a arrastava agressivamente para dentro de sua toca, a medida que ficava ainda mais extasiado ao ver que finalmente conseguira tocá-la, depois de tantos meses planejando e desejando intensamente por isso. E cada vez mais, ele a puxava para dentro de seu quadro tão cobiçado.

O pintor egoísta deixara uma marca profunda no coração daquela que o mundo nunca mais ouviu seu canto doce, e sua feição radiante de um dia ensolarado fora substituído pela tristeza profunda de um dia chuvoso, marcado pela chuva constante.

Eram esses os detalhes, principalmente a intensidade dolorosa que seus olhos transmitiam na tela, que tornavam o pintor o mais habilidoso de todos. Agora, ele está à espreita, vigilante e observador, aguardando ansiosamente a próxima musa inspiradora de seu novo quadro.

E acredite, se não for detido, ele não vai parar.


Este texto foi produzido em apoio ao movimento Maio Laranja, contra o abuso sexual de crianças e adolescentes. Denuncie!

Borboletas no EstômagoOnde histórias criam vida. Descubra agora