Eu sou a flor a quem ela arrancou do chão, muito prazer em te conhecer, caro leitor. Ah, aliás, estou grata por ela finalmente ter me dado voz; depois de tudo o que fez, isso é o mínimo que eu mereço. É a única coisa que pode fazer, não é? Patético... Enfim, estou aqui para exprimir minha revolta a respeito de meus direitos que me foram negados, destruídos, literalmente desenraizados à força! Os seres humanos têm isso mesmo, não tem? Essa necessidade ridícula de tornar tudo em belo, em ideal; não se contentam com suas próprias realidades e tentam, a partir de símbolos inventados por eles mesmos, torná-las menos entediantes, menos depreciativas. Flores foram umas das escolhidas a carregar este título – ou por melhor dizer, este fardo – de "belo", e é quando te pergunto: por quê? Poderiam ter atribuído o sentido a literalmente qualquer outra coisa. Muitas outras têm, sei disso, não pense que meu ego seja tão grande a ponto de cegar tal fato. Mas das flores, em especial, são alimentadas diversas metáforas, analogias e significados. Ah, a flor é a representação da vida, do crescimento, da superação de obstáculos – o sair de dentro da terra escura, úmida, comprimida em sua cápsula que é a raiz, sempre em direção à radiante luz do sol. Imagine a força que seu caule tão pequenino, verde e fino deve ter! E, ainda, no final de todo o esforço, trabalho árduo que é, desabrochar viçosas pétalas, abrigar abelhas nos seus interiores e miolos – continuar a dar a vida, deste modo. Até mesmo após a morte! O ciclo da vida, o espiral da vida, a vida-morte-vida, e tantos outros blá-blá-blás. As rosas representam o amor e suas nuances, as orquídeas enaltecem a beleza feminina, as margaridas simbolizam pureza de espírito, os girassóis a felicidade. Harmonia, amizade, inocência. Romance, elegância, grandeza! Ah, quantos conceitos! E eu, logo eu, flor que veio do mato, do capim que incomoda, da praga. Seria eu erva daninha também? Foi o que sempre ouvi... de mim, do lugar que emergi – que espaço feio, precisa-se carpir, atrai insetos, animais asquerosos, doença. Até doença colocaram em mim, acredita? Eu, que sou tão pouco valorizada, tão pouco observada, tão pouco apreciada, mereci morrer tão brutalmente? Se em mim ainda houvesse a beleza de um lírio, a fragrância de uma rosa vermelha, entenderia seus motivos. Não me importaria em ser cortada caso fosse protagonizar uma foto profissional, prestigiar um evento especial, ser dada de presente a alguma amante. Mas morrer para estampar uma visão idealizada de mundo é ofensivo ao extremo! Isso foi demais, passou dos limites. A mediocridade humana me ultraja! Espero que tenha sido divertido olhar para mim, para a silhueta que meu corpo frágil tomou quando contrária ao céu índigo-desanuviado do anoitecer. Que tenha aproveitado este recorte sincrônico da sua mísera existência para se inspirar e escrever um poema, eternizando-o. Que tenha guardado este momento em sua mente frágil e falha, pelo tempo enquanto estiver viva. Que tenha sido mágico desfrutar da minha pequenez, a pequenez do seu momento, a sua pequenez. A nossa pequenez, a pequenez de tudo.
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A flor juíza
Short StoryApós ser injustamente arrancada do solo, uma indignada flor finalmente toma posse de sua voz para exprimir seus mais reprimidos pensamentos.