Verão, malas e um surto.

930 72 33
                                    

Eu nunca pude entender o Real significado de amor. De lar em lar, de lugar a lugar, de braço em braço ou de colo em colo, é quase impossível agregar ao DNA o que chamamos de sentimento. Raiva, traumas, medos. O passado nunca foi meu amigo, nem mesmo meu inimigo pois, o que ele fez de mim me torna algo muito maior do que ele mesmo, é como dizem: O aluno superando o professor.
Eu vi tudo se dissipar quando o meu marido, pessoa do qual estou casada há 25 anos disse a seguinte frase: "Você arruinou o que já estava arruinado". Mas, o que é uma crise perto de mim? Mildred Ratched! eu só preciso me organizar caro amigo, entenda meu desabafo, eu nunca me abro para ninguém, mas você, você vai estar aqui comigo, me ouvindo e entendendo tudo o que quero dizer, até mesmo meus pensamentos. Sente-se de maneira confortável, encha pela metade uma taça do seu vinho favorito, e devaneie comigo.

Estados Unidos, 1945.

Minha visão estara embaçada, mãos e corpo transpirando medo e suor simultâneamente. Os gritos dos soldados feridos da guerra ecoava em todo o campo. Pessoas mutilidas pelo inimigo, perdendo sangue e a alma por grandes homens que não brigam entre si. Jovens, pobres soldados, uma vida toda pela frente, agora, tomada pela crueldade dos poderosos. Minha sanidade se
esvai juntamente com o fluido vermelho que se esguixa das veias dos combatentes. Como entregar a morte se não tenho controle nem mesmo da vida? Eles me imploram por 'eutanásia', pela misericórdia, por uma morte menos dolorosa, pois não suportam ver a ausência de um de seus membros no corpo. O travesseiro tomara lugar do cloreto de potássio, impesso sua respiração, deixo que o corpo se afunde contra a cama nada confortável. Não há aparelhos em campos de guerra, ha somente minas, é um campo minado. Em menos de 10 minutos, dou a uma alma o descanso necessário, dou aquilo que a morfina ausente não poderia dar, a paz da morte. Nós enfermeiras somos anjos, cobrimos com nossas asas, os pequenos caídos, os fracassos de um batalhão, tratamos de homens incompletos e perdidos, mas não fazemos milagres, não damos alívio momentâneo, porém naquele campo eu pudera dar aos aflitos homens àquilo que eles desejam.
Recuperara a  visão, agora nítida, eu pudera observar o silêncio dos inocentes, dos doentes e feridos, naquele pedaço de inferno pude ser anjo. O anjo da misericórdia.

Califórnia, 1947.

Levantara assustada após um pesadelo. Meus pés tocara o piso frio me fazendo lembrar do sangue coagulado em minhas mãos durante a guerra, meu corpo se arrepiara instantaneamente como um gato que vê em sua frente um bicho peçonhento. O verão havera chegado, e os tons de pêssego tomara as ruas da Califórnia e suas florestas, trazendo o clima mediterrâneo de origem.
Trajes simples, mas nunca sem elegância, as cores bailam em meu manequim, e o amerelo nunca me caiu tão bem. Saia até o quase fim das pernas, blusa branca e botões estressantes, quase desisto de abotoa-los mas insisto, calço meus sapatos pensando pouco, dando atenção ao cheiro de café que vem da cozinha.
Anne, minha diarista, possuira o dom de coar o melhor café, tão bem quanto esconder um corpo, de maneira impecável e agradável. Eu bebericara o líquido preto enquanto observava o Tombson, arrumar malas, abruptamente na sala, conversando sozinho, resmungando para as roupas e sapatos. O perguntei para onde iriamos, e sem muita vontade, disse, Monterey. Fazer o quê? Eu idagara em pensamento deixando que minhas palavras se dissolvam no café, de volta para a garganta.
Misericórdia. Eu pudera contar as palavras trocadas dentro do carro, enquanto ele dirige, demosntrando em sua face bipolar a felicidade em estar na estrada. Deduzi que o destino era negócios políticos. Eu já estara combalida com a intediante viagem ao norte, e passo a observar o asfalto.

-Mildred! Enfermeira Mildred! Solte o soldado! O solte Mildred! Você está mantando-o! O solte!.-

A vida corria em minhas mãos como aquela estrada, tem um fim, mas o que acontece no meio só depende de mim, e eu pudera decidir do meio ao fim, a vida do combatente.

-Mildred! Mildred! Solte o volante! Mildred!

Por segundos, fora tomada pelo trauma, pelo maldito trauma, fazendo com que as rodas do carro dançasse na estrada, respirei forte, soltei o controle do carro, encostada no banco sinto Tombson segurando minha face, chamando pelo meu nome ecoando como granadas em meu aparelho auditivo, suas mãos apertam meu rosto e meus olhos fixam os seus, preocupados e com medo. Respirara aliviada, puxando todo ar que meus pulmões pudera suportar.
-Querida. Você está bem? Mildred?.- colocara em mim o cinto enquanto meus pensamentos se organizam novamente na teia que era meu intelecto. Me reorganizara em 2 minutos, e tendo em vista que pude deduzir o tempo que esse processo levara, eu já estara bem um pouco antes.

Pediram por misericórdia, mas não me deram, conviver com o trauma não é tarefa fácil para um anjo, sinto minhas asas sendo cortadas por bisturis afiados, sem anestesia nem nada, a liberdade se vai, e dentro desde ser celestial resta apenas duas coisas: Coragem, sombras. Por que o anjo da misericórdia não possuí misericórdia de si?
A morte, meu caro amigo, só é um presente quando lhe é dado, e não quando presenteia a si mesmo.
Agora, só espero uma estadia tranquila em Monterey nos próximos 4 dias, ares novos enquanto o Tombson resolve o de sempre.

-Mildred, o que está havendo com você? Isso não é normal. Irei levara ao Dr Paul, grande amigo meu Lá do estado de Lucía. Talvez ele possa lhe ajudar com essas crises estranhas.- Sugerira. Que idéia mais estapafúrdia e sem fundamentos. Sei que tudo isso é um estresse momentâneo.

-Prefiro alguns dias de descanso Tombson, somente alguns dias. Provavelmente volto a trabalhar ainda este mês nos Hospital de Lucia, se o canalha do Governador manter as verbas. Espero que coloque em pauta isto na sua reunião com aquele insolente imbecil.-

O quarto possuirá duas camas, era modesto porém organizado, característico da região. Tombson arrumara as malas enquanto tomo um banho quente. Derreto os pensamentos, os deixando ir pelo ralo. O que eu posso fazer? Um casamento infeliz, um trauma, medo e um desejo absurdo de poder e vingança. E tudo que necessitara era descanso. Porra Mildred! O que você se trasnformou em apenas 2 anos, uma fria calculista enfermeira, misericórdia, torturadora de mentes.
Toalhas brancas e vapor quente, um quarto vazio pois Tombson fora para sua reunião, ficar sozinha era o alívio que minha alma precisara. Adormeci, mas não dormi, pois minha maior inimiga estava ao meu lado, a minha mente.

Pêssegos ArruinadosOnde histórias criam vida. Descubra agora