Hoje

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Tia Priscila está sentada no sofá, acalentando Gabriella que parece experimentar a mais cruel das dores por estar proibida de usar o celular pelo final de semana. Assisto à cena, incapaz de evitar permitir que o sorriso desponte em meu rosto. Minha irmã é um ser inteiramente oposto a mim, mas carrega consigo um pedaço do meu coração.

Embora eu saiba que não passa de sofrimento adolescente vazio, parte meu coração que experimente qualquer dor.
Não escondo que em muito me agrada que tenha, finalmente, se livrado daquele menino que tanto a fazia mal. Preocupa-me, na mesma medida, que tenha imediatamente mergulhado em uma nova história. Gabriella é formada por impulsos, em seu corpo corre nada além da ausência de medo de arriscar.

Quando ouço a campainha tocar, meu coração dispara e minha respiração falha por um instante. Salta ao olhar, uma vez mais, nossas diferenças primordiais: faz dois anos que tento reunir coragem para sair do limbo, mas em mim corre apenas incerteza e pavor que uma palavra errada faça com que eu perca a pessoa responsável por cada gota de inspiração que me transborda.

Abro a porta da frente e deparo-me com o par de olhos brilhantes o suficiente para manter acesa a chama de uma cidade inteira. Os grossos lábios repuxam-se em um sorriso, as tranças que jamais a abandonaram caem por sobre a frente do corpo.

— Pronta? — pergunta, adentrando a casa sem esperar permissão, como faz com cada aspecto da sua vida. Como fez com meu coração.

Íris tomba o corpo no sofá, atacando minha irmã com cócegas, arrancando sorrisos sonoros de quem há um segundo exibia apenas lágrimas. Após cumprimentar Priscila, segue a passos largos escada acima, sem esperar por mim. Vou em sua direção, não sem antes ser interrompida pela voz afiada cortar o cômodo.

— Juízo vocês duas — Priscila dispara, fazendo-me estacar no lugar por um instante.

Lembro-me que meu pai deu a mesma recomendação ontem. Envergonha-me um pouco que seja visível para todos exatamente como me sinto e, ainda assim, seja vazia a instrução, porque é irreal acreditar que qualquer coisa aconteceria. Ao tocar a maçaneta da porta do meu quarto, já ocupado por ela, acerta-me a constatação do óbvio. Se todos ao meu redor são capazes de enxergar o que meus olhos são incapazes de esconder, a pessoa capaz de desvendar minha alma com apenas um olhar certamente sabe o que enxerga ao fitar minhas íris.

Fecho a porta atrás de mim e não me movo. Minha presença chama sua atenção e Íris levanta os olhos na minha direção. Está sentada no meio do colchão, as pernas cruzadas, postura ereta. Estudamos na mesma faculdade, embora não o mesmo curso. Segui para jornalismo, enquanto ela, surpreendendo somente a si mesma, optou por comunicação.

Íris me olha, encara-me, desnuda-me em silêncio, e não sou capaz de proferir uma palavra sequer.

— O que foi, Alê? — pergunta, crispando o cenho, a confusão transbordando de sua expressão. — Você parece que vai desmaiar.

Subitamente, torna-se um pouco mais difícil respirar. Tenho ciência da reação dramática que meu corpo insiste em incorporar, mas nada posso fazer para evitá-la. Ela levanta e vem em minha direção. Atrás de mim, apenas a porta sustenta meu corpo. À minha frente, seu corpo está perto demais. As bochechas arredondadas que nunca a abandonaram contornam o rosto sereno, os olhos atentos, os lábios repartidos.
Subitamente, torna-se impossível permanecer tão perto sem tocá-la.

— Acho que não estou me sentindo muito bem — digo, desviando o olhar do seu, fitando o chão coberto de azulejos brancos, encarnando a covarde que mora em mim e vem ditando as regras da minha vida há anos. — Podemos estudar outro dia?

— Mentirosa — ela dispara. — Olha pra mim se vai me mandar embora. Olha pra mim, Alê.

Ergo os olhos na sua direção e encontro toda a determinação que sempre foi traço marcante da sua personalidade imponente. Como tempestade que não pode ser evitada, Íris dá um passo em minha direção, aproximando-se ainda mais.

Todas as cores do arco-írisOnde histórias criam vida. Descubra agora