A luz da manhã já se esgueirava por entre a cortina quando Mariana despertou, como todos os dias nos últimos 3 anos, ela se levantou, se arrumou, pegou seu livro favorito e tomou o caminho de sua cafeteria preferida, ela havia encontrado o lugar por acaso em um dos últimos passeios que fez com o pai e desde então não se passou um dia em que ela não fosse até o local. O tilintar do sino foi o aviso de sua chegada, ela cumprimentou a dona do lugar que estava no caixa e se direcionou para o seu "lugar especial", como vinha com frequência, Mariana tinha sua mesa favorita, a última do canto, próxima a janela.
_ Bom dia Mariana- Rubi, a garçonete saúda sorridente- o que vai querer para acompanhar o café?
_ Bom dia Rubi, hoje não quero nada, só o café de sempre- Rubi vai atender os outros clientes e Mariana se acomoda em seu lugar, ela retira o cachecol e o pesado casaco e os põem sobre o encosto da cadeira, pega seus óculos de grau, o livro e os deposita sobre a mesa, ela abre na página marcada quase no fim do livro, sorri satisfeita, ela não partiria sem ter terminado aquela história pela última vez. A xícara fumegante não demorou muito pare ser trazida, enquanto a fumaça aromática se dissipava no ambiente, Mariana a observava com apenas uma coisa em mente " quando eu tomar o último gole, irei por um fim a minha vida". Pode parecer ridículo o pensamento dela, por um fim definitivo em uma vida tão jovem e cheia de oportunidades? Inconcebível, além de impulsivo, mas esse pensamento suicida não é recente nos pensamentos de Mari, na verdade ela deseja por um fim em tudo desde que ela perdeu tudo. Desde que seu pai faleceu, Mari vive com uma saudade constante e uma torturante dor na alma, ele era o porto seguro, a base e o melhor amigo dela, perde- lo foi como ter a pele queimada até os ossos ou pior, ela não tinha mais ninguém além dele, era filha única e a mãe havia a abandonado ainda criança.
A xícara está pela metade e o livro chegado ao fim, ela fecho as belas páginas e tomou a xícara levando até os lábios. A sineta da porta anunciou a chegada de um novo cliente, o homem loiro de estatura mediana olha diretamente para Mariana e caminha em sua direção.
_ Bom dia senhorita- ele a cumprimenta- se não for incômodo, posso dividir a mesa com sua graça, é que esse é o meu lugar favorito- o sorriso branco e perfeito é simpático e um pouco tímido, Mariana pondera um pouco e acaba afirmando com a cabeça, não faria nenhum mal dividir a mesa, afinal ela deixaria este plano em alguns minutos, passa-los sozinha seria um pouco triste- título interessante- Mari olha para o rapaz que aponta para o livro sobre a mesa.
_ É o meu favorito, já o li tantas vezes que nem posso contar, gosta de ler também?
_ Muito, mas nunca me interessei por esse tipo de literatura, posso?- ela confirma e ele pega o livro e folheia- nunca tinha a visto aqui antes, você vem aqui com frequência?
_ Todos os dias, mas em outro horário- ele devolve o livro a mesa e abre espaço para o pedido que acaba de chegar- hoje é um dia diferente, posso dizer que o mais marcante da minha vida.
_ Isso parece interessante- ele diz e toma um gole do seu próprio café- vai ter uma promoção no trabalho ou algo assim?- ela pensa em mentir e dizer que era isso, mas ela não veria o fim desse dia então não havia sentido nisso.
_ Eu vou me matar- o rapaz não se espanta como ela imaginou, ele apenas junta as sobrancelhas como em compreensão e morde um de seus biscoitos- achei que ficaria surpreso ou assustado.
_ Por que?- ela o olha como uma cara de confusão- pessoas tiram suas vidas todos os dias, além de que se você chegou a este ponto, deve ter um ótimo motivo- ele limpa a boca e deposita o guardanapo ao lado do prato- já programou o seu último dia ou é daqui para o além? - Mariana não consegue conter o riso com a última frase do homem a sua frente, ele acaba acompanhando ela com risos
_ É daqui para o além, eu não tinha nada para fazer além de vir aqui na cafeteria- ela olha para sua xícara quase vazia- na verdade, eu estou quase indo para o descanso final, só tenho que terminar está última xícara de café como eu prometi a mim mesma.
_ Legal, se é assim quer vir comigo visitar algumas crianças no hospital, não como um encontro ou algo assim, afinal você não vai estar aqui no próximo fim de semana para conhecer a minha mãe- ele ri e ela também- não acho que seja ruim você dá um pouco de alegria a pobres criancinhas antes de te dar a paz eterna e tudo mais.
_ Seria muito legal ir, mas sabe a promessa do café e o último gole, se eu beber e ir com você vou quebrar a promessa.
_ Não seja por isso- ele pega a xícara de Mari e toma todo o conteúdo de uma vez- pronto, eu tomei o último gole, agora você pode ir comigo ver as crianças, depois pode voltar, tomar seu café e continuar com seus planos, o que acha?
_ Você é um cara engraçado, tudo bem eu vou com você...
_ Willian, prazer em ao menos poder te conhecer...
_ Mariana.
Eles pagam suas contas e deixam a cafeteria, o hospital era próximo então foram andando, as folhas amareladas das árvores pelo caminho indicavam o início do outono, muitas pessoas passavam por eles, a maioria engravatados apressados.
_ Então Mariana – Willian quebra o silêncio que havia se instalado entre eles- o que você faz quando não está tomando café?
_ Sou professora, dou aula de artes na escola pública aqui perto, e você? Por que medicina? – ele a olha questionador- o crachá- ela aponta para o bolso da camisa dele- se vai visitar crianças, chuto que é pediatra.
_ Oncologista pediátrico na verdade, minha irmã faleceu por causa de um câncer na traqueia, ela tinha 12 anos e o sonho dela era encontrar a cura para todas as doenças- Willian sorri lembrando da irmã- ela não pode realizar seu sonho, então decidi que o realizaria por ela, esse foi o legado que ela deixou para mim.
_ Nossa, posso ver que você se empenhou muito nisso, afinal você trabalha aqui- Mari diz apontando para o grandioso prédio próximo a eles- tenho certeza de que ela está bem orgulhosa do irmão.
_ Ela está sim- eles entram no prédio, passam por alguns corredores até chegar numa sala ampla onde várias crianças estão, umas brincam, outras estão sentadas lendo e outras estão deitadas em macas, mas o que todas tinham em comum além da roupa de hospital, era o semblante cansado- é aqui, todas elas estão internadas, algumas a muito tempo, vem, vamos entrar.
Mariana não conseguia descrever a sensação de estar ali com aquelas crianças, ela já tinha perdido a noção de tempo em que estava ali, Willian tinha saído a muito tempo e Mariana nem havia percebido, a animação, o amor e a felicidade que ela sentia vindo daqueles serezinhos era inspiradora, mesmo estando em uma batalha constante por sua vida, eles sorriam lindamente, naquele momento, Mariana até se esqueceu de sua dor e de seu plano suicida.
Ela se deu conta do horário quando sua barriga roncou pedindo por alimento, ela se despediu das crianças que imploraram para que ela voltasse, Mariana disse que voltaria outra vez, mas só depois se deu conta de que não poderia cumprir com o que prometera.
_ Achei você Willian- Mariana havia rodado quase todo hospital atrás dele- como você consegue se esconder assim?
_ Um mágico nunca revela seus segredos- eles riem da piada- achei que já tinha ido embora, eu estou indo almoçar, quer ir comigo? A gente pode tomar aquele seu café final.
_ Eu quero sim, Willian.
O almoço deles foi divertido, Willian era uma ótima companhia, Mariana reconheceu isso. Eles estavam de volta a cafeteria, esperando pelo seus cafés.
_ Você não me disse por que quer tirar sua vida Mariana- Willian a encara sorrindo, ela havia esquecido seu plano mas uma vez.
_ Bem, meu pai faleceu a uns 3 anos e desde então eu estou sozinha, não tenho amigos, nem namorado, não sei onde minha mãe está, era só eu e o meu pai desde que eu me lembro- Willian ouvia cada palavra atentamente- eu tentei seguir sem ele mas não deu, fui ficando cada vez mais desfocada e desmotivada, comecei a negligenciar meu trabalho e meus alunos, percebi que precisava de ajuda, fui a psicóloga mas não adiantou muito, minha depressão era muito profunda, no último ano meus dias eram resumidos a vir até aqui todas as manhãs, tomar café e depois passar o resto dia deitada no meu sofá, eu venho aqui porque esse lugar, essa mesa e esse café foram as últimas coisas que fiz com meu pai.
_ Entendo, você se sente mais próxima a ele vindo aqui, esse é um ótimo motivo para um suicídio- Willian se encosta na cadeira e cruza os braços- você acha que seu pai ia gostar dessa ideia?
_ Com certeza que não- Mari bebe um gole do café quentinho- ele acreditava fielmente na preservação de todo e qualquer tipo de vida, menos na dele e por isso ele pulo no meio da rua para salvar uma menina.
_ Então você queria que ele deixasse a menina ser atropelada? Que cruel.
_ Não, claro que não- Mari balança a cabeça inconformada- é só que ele era sempre assim, se jogando no perigo sem pensar duas vezes.
_ Ele tinha um espírito de herói- ela concorda com a cabeça- e por que você não continuou o legado dele? É belíssimo.
_ Eu não tenho essa coragem, o impulso de oferecer minha vida pela de alguém.
_ Mas você vai dar a sua vida por nada daqui a pouco- Willian aponta para xícara quase vazia- não consigo ver onde isso é melhor do que dar ela por alguém- Willian se levanta e pega suas coisas- Eu tenho que ir, não quero atrapalhar mais você- Mariana se levanta também e abraça Willian- foi muito divertido poder te conhecer, espero poder te encontrar no outro lado. Adeus Mariana. – Eles se despedem mas antes de sair Willian volta até Mariana novamente- Eu posso ficar com o seu livro? Sabe, uma recordação da minha amiga de um dia.
_ Pode sim, espero que goste dele como eu gostei- Mari toma seu último gole e observa enquanto Willian vai embora pelas ruas amareladas pelo outono. Agora de volta ao seu apartamento, Mariana relembra seu último dia, foi sem dúvidas o mais divertido em muitos meses, ela sorri recordando a visita e as crianças alegres que conheceu, ela senta em sua cama e vê no criado mudo, sua carta final.
Ela havia escrito na noite anterior, nela continha toda a explicação do que a levou a fazer isso, ela pegou a carta e a leu, a cada linha ela percebia o quanto aquilo não era mais o que ela queria, depois do dia que teve a esperança ardia novamente em seu coração, Mari sorrio enquanto rasgava a carta e a jogava na lixeira, Willian tinha razão, desperdiçar sua vida ali não era melhor do que dá- lá a alguém desconhecido.
No outro dia bem cedo, Mariana foi até o hospital, queria falar com Willian e agradecer por ter aberto seus olhos, ela procurou por ele pelos corredores, mas sem sucesso, Mariana desistiu de procurar sozinha e foi pedir informações a uma das enfermeiras.
_ Com licença, o Dr. Willian já chegou?
_ Que doutor?- a enfermeira assume uma cara confusa- não há nenhum doutor com esse nome aqui.
_ Como não? Ele é oncologista pediatra, loiro, um pouco mais alto do que eu.
_ Olha senhorita, esse é um ambiente sério, não fique fazendo piada com nossos profissionais falecidos.
_ Falecido? Como... como assim?
_ Oras, o doutor que descreveu, o Dr. Willian Rodrigues foi um grande profissional em sua área, ele desenvolveu diversos tratamentos menos agressivos para nossas crianças, ele foi um herói para nossa sociedade, mas infelizmente ele nos deixou a um ano por conta de um tumor cerebral gravíssimo.
_ Me desculpe eu não sabia, sinto muito- Mariana deixa a enfermeira e anda sem um rumo certo, em sua mente só se passava as palavras da mulher " ele nos deixou a um ano ", Willian estava morto todo o tempo, sem que ela percebesse estava diante da sala das crianças, na parte superior da entrada ela reparou na placa dourada com letras pratas," ala de lazer infantil, Dr. Willian Rodrigues " era o que estava escrito.
_ Não pode ser- Mariana levou a mão aos cabelos, desacreditada.
Mari abre a porta da cafeteria e o sino tilinta, ela olha em direção a mesa mas ela está vazia, ela se encaminha até Rubi e pergunta se ela havia o visto.
_ Loiro?- Rubi diz passando o pano no balcão- Mas você esteve sozinha o tempo todo- os olhos de Mariana se arregalam- ficou rindo, falando sozinha e lendo seu livro.
_ Mas você foi até a minha mesa com um pedido de café e biscoitos, não foi?
_ Sim, mas era para a outra mesa, era só isso?
_ Sim, obrigada Rubi- Mariana anda até a sua mesa favorita, no canto perto da janela, ela vê lá em cima seu livro favorito, ela se senta, olha em volta, mas ninguém parece se importar com o que ela está fazendo, lentamente ela levanta a capa e encontra uma mensagem na primeira página:
" QUERIDA MARIANA,
SEI QUE ESTÁ SENDO DIFÍCIL PARA VOCÊ SEGUIR EM FRENTE, MAS É PRECISO. DE TODAS AS CONQUISTA E FEITOS DE MINHA VIDA, VOCÊ É A MAIS PRECIOSA, TENHO MUITO ORGULHO DE VOCÊ E DA MULHER QUE SE TORNOU, SE ESFORCE PARA VIVER CADA DIA NÃO SÓ POR VOCÊ MAS POR MIM TAMBÉM, ESTAREI SEMPRE E PARA SEMPRE AO SEU LADO.
COM AMOR, SEU PAI."
Uma lágrima escorre pelas bochechas de Mariana, ela olha para fora, pela janela e vê Willian do outro lado da rua, sorrindo e acenando mas antes que ela pudesse fazer qualquer movimento, ele some.

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O Sabor do Café
Historia CortaUma jovem desacreditada da vida q tem um ritual diário, ir todas as manhãs a sua cafeteria preferida e tomar uma xícara de café, mas no dia que ela decide por um fim definitivo na sua vida, ela vai até a cafeteria tomar sua última xícara, só qu...