Uma gota d'água tocou a ponta do meu nariz e eu abri os olhos.
Sentei-me na cama, com dificuldade, por conta da barriga de oito meses.
— E essa agora, Kundalini! — sequei o nariz com os dedos e olhei para o teto. Provavelmente, tinha uma goteira no telhado.
— Você vive no terceiro andar! — A voz na minha cabeça debochou um pouco. — Tem gente no andar de cima, e não o telhado!
Talvez um problema no vizinho de cima.
Voltei a cobrir-me com o lençol e já ia fechar os olhos, quando uma segunda gota maior aterrissou sobre a minha testa.
— Como é possível? — Eu estava coberta com o lençol.
Sequei a testa e levantei-me de vez, bufando e arrastando a cama para o outro lado do quarto. Àquela hora da noite, eu mal me importava com a bagunça que faria. Só queria dormir.
Levantei-me e caminhei até a janela. A sirene do toque de recolher soou.
Olhei para o relógio. Eram onze horas da noite, mas o bairro de Pigalle, no Norte da capital francesa, nunca dormia. A janela do meu apartamento dava para a avenida abaixo. Carros e mais carros circulavam por ali, soltando lufadas cinzas de gás.
De cima, o Boulevard de Clichy, grande artéria da cidade, parecia um formigueiro visto por dentro. O movimento dos carros, bicicletas, ônibus e gente andando lembrava-me de formigas sem saber para onde correr. O pessoal tinha meia hora para voltar para suas casas. Bem abaixo do edifício onde eu morava, uma mulher ligou o carro dela e, segurando a barra do vestido, apressou-se para entrar no veículo. O som da ignição lembrou-me dos roncos de Nicolas, meu ex-namorado. E quando a mulher pisou no acelerador, o carro produziu um rastro de fumaça adicional, que subiu e se colou no Véu, aquela fina película que encobria o nosso mundo e que eu só tinha começado a enxergar há um ano, quando essa confusão toda começou. A fumaça colou-se no Véu, já cheio de manchas cinzas.
Naquela noite, havia algo de diferente no ar. Apesar do verão em Paris, os raios de Sol não conseguiam atravessar mais. Tudo o que víamos era uma bruma acinzentada, mas a minha pele suava do calor. E, naquele cair de noite, eu sentia que a goteira na minha casa não era a única coisa estranha.
— Você está pronto pra vir pra cá? — pensei, segurando a barriga bem num ponto onde eu tinha recebido um chute do bebê. — Mas como eu vou fazer quando você chegar aqui, na Terra?
Ele chutou mais uma vez e outra gota caiu.
Levantei a cabeça e encarei o teto. Não tinha coisa alguma ali. A sirene do toque de recolher tocou mais uma vez.
— Paris... — A cidade tinha vida. — Tem certeza de quer vir para cá? Sob o Véu, tudo é difícil.
Um terceiro chute. Mais uma gota aterrissou na minha cabeça.
— Mas, o que é isso?
Ignorando a polícia que saía a cavalo, enxotando o pessoal que não se apressava, eu apanhei uma cadeira para ver de onde vinha aquela goteira.
Estava escuro, mas, mesmo assim, eu sabia que tinha algo ali. Podia ver faíscas que se agitavam em frente dos meus olhos. Desconectando-me da confusão lá fora, o meu ser foi engolfado por um silêncio de floresta, que guarda em segredo, por trás de suas árvores, um mundo cheio de vida.
Havia algo ali.
Certeza.
Estreitei os olhos. Aproximei-me. Uma tempestade despencou sobre mim. Dentro do meu apartamento?
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A Grande Mandala
SpiritualDe volta à sua terra natal, Kundalini testemunha num sonho o assassinato de sua madrinha, tutora e melhor amiga, Hata. Golpe fatal do destino, ato premeditado pela mãe e seus capatazes ou simples acaso da vida? A relação entre Kundalini e a mãe, Sol...