— Ai, a torneira, Igor! — soltei assim que lembrei. — Quer dizer, a torneira não, o ralo... da pia, o ralo da pia, você sabe.
— Entupiu de novo? — ele perguntou com os olhos ainda vidrados no jogo.
— Foi. Acho que a gente vai ter que mexer na caixa de gordura, único jeito.
Igor fez uma careta desagradável, enrugando ainda mais seu queixo. Os pelos brancos que despontavam ali me chamavam a atenção, não tinha notado eles ainda.
— Truco — ele pediu, erguendo o olhar para mim.
Olhei para o três de copas solitário na minha mão e depois para o Às de ouros na mesa. Se a gente não jogasse há tanto tempo juntos eu talvez tivesse rebatido com um "seis", mas eu conhecia todos os trejeitos do meu adversário e sabia que aquela concentração toda só podia significar que ele tinha o gato na mão — ele achava que me enganava fazendo de conta que estava na dúvida, fazendo cena de que ia blefar, coitado, não saberia mentir nem se tentasse muito. Lancei meu três de cabeça para baixo de volta ao baralho e tomei um gole do meu suco; Igor largou uma risada fraca.
— Fez bem. — Ele me mostrou o dois de paus que tinha na mão, em seguida devolvendo-o ao baralho. Deu a si aquele um ponto merecido — mesmo que a gente não ligasse muito para isso — e depois me acompanhou no suco.
— Que sorte a minha — disse, largando o copo e já amontoando as cartas para embaralhar.
— Tinha o quê na mão?
— Pouca coisa.
Talvez eu pensasse que pudesse enganar ele também, mas vi no seu olhar estreitado que ele não tinha comprado minha resposta.
— Já recebeu a pensão desse mês? — Igor perguntou, mudando de assunto e aguardando para cortar o baralho.
— Recebi... — respondi quase num sussurro.
Na verdade, não. Era o décimo dia útil do mês e a única coisa que tinha chegado no meu correio era cobrança. Mas meus trocados de emergência vinham dando conta... mais ou menos. Não sei se Igor acreditou em mim porque cortou o baralho sem tirar os olhos dos meus. O que eu podia dizer? Ele já me ajudava demais, não ia extorquir o velho homem.
— Quanto? — ele perguntou enquanto espiava a carta que pegara. Pela falta de brilho na expressão, eu chuto que ele pegou uma dama ou próximo disso.
— Tudo, ué.
Distribuí as cartas, virei um Às na mesa e dei outro gole no meu suco antes de ver o que eu peguei. Apesar de um pouco decepcionada, o rei de paus me animou com a esperança de que ao menos uma jogada eu ganhava do meu amigo.
— Então já pagou todas as contas?
— Já, já.
Igor lançou sua dama logo de cara, que inferno. Pensei e repensei minha jogada, mas não abri mão do meu rei, com sorte ele tem outra dama ali. Lancei um sete.
— Torne! — provoquei. Um arroto adocicado veio junto.
Mas Igor mandou a carta seguinte direto para o baralho. Lazarento!
— Por que que o Sérgio veio me perguntar de você então? — ele indagou coçando logo abaixo da boina.
— Devia ser pra dizer que tô muito bonita ultimamente — rebati preocupada com minhas cartas.
— Ele só fala com a gente pra cobrar, Cássia, não faz de conta que não sabe.
Achei um pouco injusto, Igor sabia que eu gostava de alimentar aquela fantasia: Sérgio, o proprietário bonitão, apaixonado pela cinquentona solitária que aluga sua casinha e faz charme na janela. Que se dane as cobranças, eu tinha sonhos.
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Igor e Cássia - conto
Short StoryAmizade, afetos e um tanto de blefes que não enganam ninguém. Igor e Cássia jogam truco na cozinha e tentam evitar falar do que gostariam de dizer.