Um Culto Estranho

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UM CULTO ESTRANHO

                                                                                                                                                            Christopher Rocha


Há décadas investigo o culto, reuni inúmeros documentos, depoimentos, fotos e qualquer pista que ajudassem a compreender os estranhos rituais que aconteciam no matagal do Tarumã, bairro mais isolado de Manaus, no início do século XX. Em meio às reservas ambientais, um grupo de imigrantes portugueses realizavam um culto, os moradores das proximidades diziam que era possível ouvir gritos e canções em uma língua estranha nas noites de sexta-feira quando eles adentravam a mata. Minha avó, Mahin Leveau, antropóloga, investigou a cerimônia por anos e um dia desapareceu misteriosamente. A família passou anos em busca de seu paradeiro, mas nunca a encontraram. Quando eu estava preste a finalizar a graduação em história, precisava de um objeto de estudo para o trabalho de conclusão do curso. Em busca de inspiração, decidi visitar a antiga casa da vovó, já tinha ouvido meus pais falando sobre sua obsessão pelo culto dos brancos europeus, aquele poderia ser o foco da minha pesquisa. Encontrei uma série de documentos que ela compilava, mas ainda havia uma grande lacuna, era uma pesquisa inconclusa. Me debrucei a reconstruir os passos da vovó e fui em busca dos moradores nas extremidades das reservas. Ao fim, meu TCC foi sobre a História das Reservas Ambientais na Cidade de Manaus, as narrativas orais me abriram um leque de possibilidades para as minhas pesquisas, mas os depoimentos eram confusos e contraditórios, ninguém sabia ao certo o que realmente era aquela cerimônia.

Após a faculdade, os anos seguintes foram dedicados ao estudo do culto, mas nunca encontrei nenhum de seus praticantes. Em um simpósio sobre Os Estudos das Ciências Ocultas, apresentei as informações que reuni até ali e o questionamento se se tratava de culto sacro cristão, tendo em vista que o cristianismo ainda era muito forte no ocidente ao final do século XIX e início do século XX, ou de um culto pagão. Nesta oportunidade, tive contato com pesquisadores de seitas secretas de várias regiões da Europa e de vários países da América Latina, havia um fato curioso nos depoimentos, em todos eles apareciam a presença de uma estranha melodia de flautas, gritos de flagelos, canções em línguas desconhecidas e seus frequentadores eram todos brancos.

Um pesquisador chamado Simón Siles, da Bolívia, expôs um desenho feito à mão por indígenas que alegavam terem visto o culto. Segundo o Siles, o povo Weenhayeks teme o culto desde o século XVIII, eles acreditam que se trata de um ritual de invocação de um monstro que emerge das profundezas da terra, pai de todos os demônios, eles o chamam de Yurupari. O desenho ilustrava um monstro feito de quartzo negro, com dentes pontiagudos e olhos de cobra; seus braços como de humanos, mas escamados com quartzo; e suas patas com garras como de pássaros. Yurupari provocava grande medo nos povos Weenhayeks, nas noites de culto eles escondiam as crianças para que não fossem dadas como oferenda ao monstro. Siles acrescentou que os flagelos consistiam em arrancar partes do corpo dos devotos em sacrifício ao demônio.

O pesquisador boliviano ajudou a nortear minha busca por fontes, após uma longa análise dos relatórios da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, encontrei o contato de um pequeno grupo de Barés que moraram na reserva por longos anos. Uma velha senhora chamada Kaena Baré concordou em conceder algumas horas de entrevista, em seus relatos ela relembrava das noites em claro em que toda a comunidade se armava com medo dos rituais, a sua narrativa se assemelhava a dos Weenhayeks, no entanto, os Barés chamavam o monstro de Jurupari. Kaena contou que em uma noite de cerimônia, um corajoso baré decidiu tentar matar o monstro, mas quando ouviu o seu grunhido ele enlouqueceu e passou noites sem conseguir dormir, sonhando com o demônio o devorando. Mesmo com o tratamento dos pajés ele não resistiu e acabou morrendo, foi então que os barés decidiram deixar a reserva e ir para cidade.

Depois de décadas de investigação, a velha Kaena havia me ajudado a desvendar o paradeiro de minha vó. Acredito que sua ambição em descobrir mais sobre o culto a levou a etapa crucial de sua pesquisa, o experimento de campo. Vovó estava determinada a saber o que os brancos cultuavam, ela só não sabia o que era. Agora eu sei. E acho que um dedo mendinho deve resolver.

Se você leu este manuscrito até aqui, saiba, o monstro existe. Eu o invoquei e devo não ter sobrevivido. Por favor, publique o resultado da minha pesquisa e assegure que ninguém cometa o erro de ir à minha procura.

Att,

Tity Leveau, 17 de ago de 2004.

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