Acordei com um bom humor invejável, apesar da segunda-feira. Normalmente, o meu pai me leva ao colégio,
mas hoje eu resolvi ir de ônibus, já que queria chegar bem cedo para tentar ver o Marquinho entrando. A conversa
da noite passada não me saía da cabeça, e eu precisava olhar pra ele, só para abastecer o meu coração um
pouquinho.
Foi chegar na porta, que o meu encantamento sumiu. O Leo estava parado em frente ao carrinho de balas e, de
repente, eu me lembrei de tudo aquilo que a Gabi tinha me contado. E se ela estivesse certa e o Leo realmente me
visse com outros olhos? Mas ele vivia falando de outras meninas comigo, e no começo do ano ele tinha até uma
namorada...
Eu me aproximei devagar e ele abriu o maior sorriso quando me viu. É engraçado como uma simples suposição
faz a gente olhar diferente para uma pessoa. Normalmente, eu correria para ele, daria um beijinho no rosto,
perguntaria sobre o final de semana... mas eu estava totalmente na defensiva. Precisava averiguar aquela história
e, se fosse verdade, não podia deixar que ele pensasse que tinha alguma chance, afinal, o meu coração estava
completamente ocupado.
Eu fiquei lá do lado dele, meio sem jeito, esperando que ele terminasse de pagar o halls que estava comprando.
Ele me ofereceu um e perguntou se tinha dado formiga na minha cama, já que eu quase todo dia chegava atrasada.
Eu não podia dizer pra ele que a tal formiga tinha nome, então simplesmente disse que tive insônia de novo.
“Não é insônia”, ele falou. “Insônia faz as pessoas não dormirem ou acordarem no meio da noite. O que faz com
que a gente acorde muito cedo é ataque de ansiedade. Você está ansiosa, Fani?”
Eu gostaria que o Leo não fosse tão inteligente! Fiquei toda sem graça, o que ele deve ter achado bem estranho,
já que normalmente não tem ninguém com quem eu fique mais à vontade do que com o Leo.
Aí ele meio que ficou me chamando pra gente subir pra sala, só que eu tinha chegado mais cedo exatamente
para ficar lá fora e ver os professores entrarem. Então eu disse pra ele ir subindo porque eu tinha que passar na
secretaria.
Os minutos foram passando e nada do Marquinho. Todos os professores chegaram, o sinal bateu, e eu lá,
parecendo uma daquelas alunas pervertidas, que os pais deixam na porta do colégio crentes de que elas vão
assistir às aulas e elas simplesmente não entram, ficam do lado de fora fumando e falando bobagem.
Eu comecei a ficar tensa, já estava quase perdendo aquela vontade louca de ver o Marquinho e resolvi então
esperar só mais três minutos, contados no relógio. Estava faltando apenas um minuto, quando ouvi o meu nome.
“Estefânia, o que você está fazendo aqui fora até agora?”
Era a diretora! Eu fiquei roxa de vergonha. Por mais que eu chegue sempre atrasada, eu entro rapidinho, não
fico lá fora fazendo hora. Fiquei gaguejando, tentando inventar uma desculpa, quando uma voz por trás dela me
fez respirar aliviada.
“Fani, sua louca! Podia ter me esperado lá dentro! Aqui está o seu celular!”
Até suspirei! A Gabi tem o dom de sempre aparecer na hora certa.
“Oi, Dona Clarice!”, ela falou virando para a diretora. “Eu marquei com a Fani aqui fora antes da aula, mas me
atrasei um pouquinho...”
Eu sorri pra ela, nem me lembrando da raiva que ela tinha me feito passar no dia anterior, e nós entramos
rapidinho no colégio.
“Agora dá pra me explicar o que você estava fazendo lá fora?”, ela quis saber assim que chegamos à sala. “Você
já pensou o que teria acontecido se eu não chegasse naquele momento? Você sabe que a Dona Clarice liga para os
pais de quem mata aula e faz com que eles busquem os filhos na sala dela? Você imagina a cara da sua mãe tendo
que te buscar na sala da diretora? Afinal, você estava matando aula por quê??”
Eu nem tive tempo de responder pra ela que eu não tinha a mínima intenção de matar aula. A professora chegou
bem pertinho e perguntou se a gente queria terminar a conversa na diretoria.
Quando o sinal tocou, eu resolvi agarrá-la pelo braço e dar uma fugidinha até o banheiro para que pudéssemos
conversar direito. Expliquei rapidamente (só temos cinco minutos entre uma aula e outra) o caso do telefonema da
noite passada e como isso gerou em mim um desejo alucinante de ver o “Mr. M” (na presença de outras pessoas
nós o chamávamos assim, pra não gerar desconfiança). Ela disse que eu era muito boba de ficar esperando a
entrada dele, que eu devia ter marcado era a saída, porque todo mundo sai ao mesmo tempo.
E foi o que eu fiz. Na hora do recreio, a Gabi foi comigo olhar o quadro geral de horários. Descobrimos que o
Marquinho daria o último horário para o 1
o ano B. Então, eu pedi para a professora de Inglês me deixar sair cinco
minutinhos mais cedo (dei a desculpa de que tinha médico) e fui até o andar do 1
o ano. Eu ia ficar fazendo uma
hora por lá e, quando batesse o sinal, iria fingir que estava procurando algum aluno até o Marquinho aparecer e eu
suprir a minha vontade de vê-lo.
Mas, para minha grande decepção, ao chegar na frente da sala, constatei que a porta estava aberta e que não
havia uma alma viva lá dentro. Cheguei em casa frustradíssima.
Eu nem tinha almoçado ainda quando a Gabi me ligou para saber se o nosso plano tinha sido bem-sucedido.
Contei o péssimo resultado e ela disse que, na hora em que eu ligasse para ele hoje, ficaria sabendo o que teria
acontecido com ele ou com a aula do 1
o ano.
Coitada da Gabi, ela é tão ingênua. Até parece que eu vou ligar para o Marquinho. É óbvio que eu não vou. Por
três motivos básicos:
1. Pra não perder a graça. Ele disse que é curioso, não é? Então vai ficar mais ainda.
2. Porque o efeito do champanhe passou completamente e hoje eu estou mais covarde do que um rato.
3. Porque eu tenho a tal reunião de intercâmbio na quarta e a minha mãe cismou que eu tenho que ir cortar o cabelo para
passar uma boa impressão. Como eu também tenho spinning e aula particular de Física, só daria tempo para ligar bem tarde.
E aí o pessoal da casa dele poderia atender (ele disse naquele dia que estava sozinho em casa... com quem será que ele
mora?).
Eu tinha acabado de colocar o telefone no gancho e ele tocou de novo. Era o Leo. Ele queria saber por que eu e
a Gabi estávamos tão misteriosas hoje e que história tinha sido aquela de eu entrar atrasada no primeiro horário e
sair mais cedo no último. Tomei fôlego e comecei a minha historinha ensaiada.
“Entrei tarde porque tive que ir à secretaria pedir autorização para sair mais cedo”, eu disse meio gaguejando,
já que eu odeio ter que mentir para o Leo. “Para conseguir isso, eu disse que tinha que ir ao médico.”
Como o Leo sabia perfeitamente que não tinha médico nenhum, tive que inventar mais um pouquinho: “O real
motivo de eu ter saído antes foi porque a minha mãe queria que eu cortasse o cabelo hoje de qualquer jeito, e
meio-dia foi o único horário que eu arrumei...”.
Olha só a teia em que eu tive que me enrolar só para não dizer a verdade pra ele. Bom, pelo menos essa foi uma
mentira verossímil, já que eu realmente vou cortar o cabelo hoje. O problema foi que ele me perguntou como ficou
o meu cabelo, e eu – que nem tinha pensado no corte ainda – fiquei toda: “Ah... você sabe! Ficou mais ou menos!
Como sempre”. E ele respondeu: “Bom, espero que você não tenha cortado muito curto. Seu cabelo é lindo do jeito
que ele é”.
Sabe, eu começo a achar que a Gabi pode estar certa. Quem, em sã consciência, pode achar o meu cabelo
bonito? O meu cabelo é liso, mas muito liso mesmo, daqueles escorridos que não deixam parar nem passador, nem
faixa, nem gominha, nem tiara, nem nada! Se quero fazer um rabo de cavalo tenho que tacar gel para fixar um
pouco, mas daí a um segundo tudo desmancha. E vem o Leo me dizer que isso é bonito? Caramba, realmente ele
deve estar apaixonado.
Será que, se eu cortar o cabelo bem curtinho, ele se desencanta de mim?
Ray Kinsella: Então o que você quer? Terence Mann: Eu quero que eles parem de me pedir
respostas, de me implorar para falar de novo, escrever de novo, ser um líder. Eu quero que eles
passem a pensar por eles mesmos... Eu quero minha privacidade.
(O campo dos sonhos)
Fani, seu cabelo ficou ainda mais lindo. Você está parecida com a Branca de Neve!
Leo
Faniquita, que cabelo “patricinha” é esse que você arrumou? Aposto que isso é coisa da sua mãe, né? Ligou
para o “Mr. M” ontem? Descobriu o mistério da classe desaparecida?
Gabi
Estefânia, como você foi embora mais cedo ontem, não deve ter ficado sabendo que hoje,
no intervalo, terá reunião para definirmos o local e a data da festa de fim de ano da nossa
sala. Como você é novata, não sei se está a par de que a nossa sala tem o costume de dar
essa festa todos os anos e que é o maior evento anual do colégio, todas as salas disputam
nossos convites. Portanto, vê se pelo menos hoje você não sai voando pela porta assim que
o sinal bater. A propósito, você bem que podia pedir para a Gabriela oferecer o salão de
festas do prédio dela, né? Ele é o único que tem piscina, sauna, quadras, sala de
musculação e fliperama. Não peço diretamente porque tenho uma leve impressão de que
ela não vai muito com a minha cara. Claro que isso é só impressão, mas – em todo caso –
sendo você a melhor amiga dela, com certeza será mais bem-sucedida do que eu. Espero
vocês no intervalo, ok?
Vanessa
P. S.: Seu cabelo ficou fofo.
Ei, o que foi que a Vanessa te escreveu? Você vai mudar de lado só porque cortou o cabelo que nem o dela,
é? Ela te convidou para alguma “festinha-vip” daquelas que ela dá em casa? Aposto que ela te chamou para
ser do grupo do trabalho de Química dela! Cuidado, viu, Fani... ouvi dizer que essa menina fica só dando
ordens enquanto o resto do grupo faz o trabalho inteiro. Posso ver o bilhetinho dela? Você vai fazer o
trabalho comigo, né?
Gabi
Fani, vi que a Vanessa te mandou um bilhetinho. Vocês estão se entendendo agora? Não te falei que ela era
gente boa?
Leo
Puxa, Estefânia! Você é rápida mesmo, hein? A Gabriela acabou de me escrever um bilhete
oferecendo o salão de festas do prédio dela! Só não entendi que história é essa de festinha
e trabalho de Química que ela escreveu. Você sabe do que ela está falando? Ela falou que
também quer ser convidada. Eu também quero! Só para a festa, claro. Para o trabalho de
Química eu não faço questão. Ah, por falar nisso, você quer ser do meu grupo? Não leve a
mal, mas não posso chamar a sua amiga, ela me parece ser meio maluca, fala umas coisas
meio sem nexo... apesar de ser superlegal, afinal colocou o prédio dela à disposição da
nossa sala!
Vanessa
Fani, o que foi que a Vanessa disse agora? Ela te contou que eu mandei um bilhete para ela oferecendo o
meu salão de festas? Eu sei que você não quer me mostrar os bilhetinhos dela, mas nem precisa, né? Tenho
certeza de que ela está te convidando para alguma coisa legal. Aí, eu imaginei que, se oferecesse o meu
prédio, ela também me convidaria. Acertei, não é? Aposto que nesse bilhete agora ela pediu pra você me
chamar também!
Gabi
A Gabi também está amiga da Vanessa? Caramba, achei que isso nunca fosse acontecer! Elas não olham
uma pra cara da outra desde o jardim de infância, quando a Gabi derrubou Danoninho no vestido da
Vanessa! Que bom... não vou precisar mais fingir que não gosto da Vá. Você vai ver, Fani, ela é um amor,
pode acreditar.
Leo
Estefânia, eu estava pensando, pode chamar o Leonardo para o nosso grupo de Química
também. Ele sempre tira notas altas, né? E, além disso, me mandou um bilhete fofinho
agora, falando umas coisas sobre esquecer as diferenças do passado... ele escreve bem,
né?
Vanessa
Fani!!! Você quer me enlouquecer?? Está querendo me tirar do mundo?? Que tanto de bilhete é esse que o
Leo e a Vanessa estão te passando?? Por que eu não recebo também? E por que você não responde
nenhum? Nem os meus você quer responder! Você vai me mostrar tudo depois da aula, né? Ela te falou se
tem alguma festa bem VIP essa semana? E falou que dia a gente vai encontrar pra fazer o trabalho de
Química?
Gabi
Fani, por que você trocou de lugar? Vai virar CDF agora? E por que amassou todos os bilhetes? Você não vai
colocar na sua agenda, como sempre?
Leo
Fani, você não quer mais ser minha amiga? Está fugindo de mim? Por que foi se sentar tão longe? A Vanessa
está fazendo sua cabeça, né? Achei que ela já tivesse superado aquela coisa do Danoninho. Se precisar, eu
peço desculpas, mesmo que o fato tenha acontecido 10 anos atrás.
Gabi
Estefânia! Que acesso de fúria foi esse agora? Não sabe que quem senta na primeira fila
não pode escrever bilhetes? Os professores veem tudo o que a gente faz. Espero que a
professora só tenha mandado pra diretoria esse seu papel com “nomes feios” que ela falou.
Você escondeu aqueles que eu passei pra você antes, né? Eu não tenho nada com isso!
Meus bilhetes são de cunho estritamente estudantil.
Vanessa
Estefânia Castelino Belluz,
Em decorrência da sua falta de atenção durante as aulas, gostaria de chamar os seus pais para uma reunião na minha sala, sexta-
feira, às 8h. Por favor, traga esta nota assinada amanhã.
Diretora Clarice Albuquerque da Silva Fagundes
Clementine: Você me conhece, eu sou impulsiva.Joel: É isso que eu amo em você.
(Brilho eterno de uma mente sem lembranças)
Ainda bem que eu tenho essa prova de intercâmbio hoje. Ontem à noite, quando eu pedi para a minha mãe
assinar a tal nota da diretora, fiquei morrendo de medo de levar um castigo terrível (tipo ser proibida de ir ao
cinema), mas tudo o que ela disse foi: “Claro que você está com falta de atenção, afinal, amanhã vai ter que fazer
uma prova mais importante para o seu futuro do que qualquer provinha que esse colégio possa te aplicar”. E
assinando, continuou: “Você já resolveu com que roupa vai? Nada de jeans, viu, minha filha? A nossa imagem é
muito importante nessas ocasiões. Acho que o ideal seria um tailleur, que por sinal você não tem. O problema é
que o único horário em que eu poderia ir com você comprar seria de manhã...”.
Ficou um pouco pensativa, leu o bilhete da diretora de novo e disse: “Sabe de uma coisa? Acho melhor você não
ir à escola amanhã. É bom que você dorme mais um pouco, fica com a aparência descansada e lá pras 10 horas a
gente vai ao shopping e resolve esse problema da roupa”.
Ela me devolveu o papel e saiu cantarolando. De repente, voltou-se para mim, apontou para a minha mão e
falou: “Ah! Mostre isso para o seu pai. Ele é que vai ter que ir se encontrar com a sua diretora na sexta-feira, eu
tenho consulta com a minha dermatologista nesse mesmo horário”.
Minha mãe me surpreende. Se fosse em algum outro dia, tenho certeza de que ela gritaria, reclamaria das
minhas companhias, perguntaria se eu estou precisando de uma psicóloga, me colocaria de castigo e faria questão
de ir pessoalmente falar com a diretora. Acho que ela está realmente se importando com essa coisa de
intercâmbio. Pelo que eu estou entendendo, parece que uns filhos de umas amigas dela passaram na entrevista do
ano passado e ela não quer ficar por baixo. Ou seja, eu que experimente não passar nesse negócio que o tal castigo
virá dobrado! Minha mãe odeia não ser a melhor em qualquer coisa que seja, e isso me inclui. Por isso, ela faz
questão que eu, pelo menos, pareça uma filha perfeita.
Cheguei bem de mansinho perto do meu pai, que estava concentradíssimo assistindo ao Jornal Nacional. Fingi
que eu estava também interessada nas notícias e então, na hora do comercial, quando finalmente ele pareceu
notar a minha presença, eu dei um sorrisinho meio amarelo.
“Aconteceu alguma coisa, minha filha?”, ele falou com uma cara meio preocupada. “Você não é de rir à toa
assim...”
Aí eu fiquei com vergonha. Não com medo de que ele brigasse ou coisa parecida... eu fiquei com vergonha
mesmo. Vergonha de ter que mostrar um bilhete desses devido a um acontecimento do qual eu não tive a mínima
culpa e também de submetê-lo ao inconveniente de ter que ir ao meu colégio ouvir a diretora dizer o contrário. Eu
abaixei os olhos e entreguei o papel. Antes que ele lesse, eu disse: “Pai, eu não estava desatenta. Eu fiquei foi
nervosa e escrevi um palavrão no caderno, sem querer, na frente da professora”.
Ele fez uma cara assustada quando eu falei do palavrão e leu a nota da diretora. Aí, ele tirou os óculos, abaixou
a televisão e, com a maior calma do mundo, pediu para eu contar aquele caso direito.
Eu falei tudo, desde o dia anterior quando eu não fiquei sabendo sobre a reunião da sala por estar no banheiro
(claro que eu não ia contar que tinha saído mais cedo pra ver o meu professor!); e depois sobre os bilhetes que o
pessoal me mandou durante a aula, falei da revolta com que eu fiquei por descobrir que a menina mais fresca da
sala é também uma interesseira por querer se aproximar de mim apenas para conseguir o prédio da minha melhor
amiga emprestado; e também do susto que eu levei por perceber que pode ser que eu não conheça direito essa
minha melhor amiga, pois até então eu achava que ela se orgulhasse de não fazer parte do bando e gostasse de ser
original; ah, e eu também falei que o meu suposto melhor amigo (que inclusive eu cheguei a considerar que
estivesse gostando de mim) parece ter uma quedinha pela tal menina fresca-interesseira que começou toda essa
confusão.
O meu pai continuou com aquela mesma expressão calma de quando eu comecei a minha explicação, balançou a
cabeça afirmativamente, deu um sorrisinho e disse: “Fani, eu admiro muito você. Eu, no seu lugar, teria não só dito
o palavrão, mas também jogado a carteira pra cima, saído pisando duro e batido a porta da sala!”.
Eu olhei pra ele admirada e ele riu.
“Bom, pelo menos eu teria tido muita vontade de fazer isso”, ele disse me abraçando.
A gente ficou assim um tempo, ele falou que podia deixar que ele iria à tal reunião e falaria uma coisa qualquer
pra “livrar a minha barra” com a diretora. Aí assinou o bilhete, me devolveu com uma piscadinha e voltou a assistir
ao jornal.
Eu levantei e já ia saindo da sala quando ele me chamou.
“Fani”, ele falou com cara de quem estava se segurando para não rir, “a propósito... qual palavrão você
escreveu?”
Bridget: É de conhecimento universal que, quando uma parte da sua vida começa a ir bem, outra
cai espetacularmente em pedaços.
(O diário de Bridget Jones)
Prova de seleção do programa de intercâmbio SWEP –
Small World Exchange Program
Nome:
Data de nascimento:
País de origem:
País desejado (indique 3 possibilidades):
1. 2. 3.
Instruções: A avaliação consistirá de 4 partes.
Parte 1: Conhecimentos gerais. O candidato receberá a prova contendo
10 perguntas sobre conhecimentos gerais e terá 30 minutos para
respondê-la e passar as respostas para o gabarito.
Parte 2: Inglês. O candidato receberá a prova contendo 10 questões
e terá 30 minutos para respondê-la e passar as respostas para o gabarito.
Parte 3: Redação. O candidato terá 45 minutos para escrever
aproximadamente 30 linhas sobre o tema: “Por que eu quero ser
intercambista?”.
Parte 4: Entrevista. À medida que for chamado, cada candidato
deverá se dirigir à banca examinadora onde será entrevistado.
Atenção: O gabarito de todas as partes deverá ser preenchido a caneta.
O candidato poderá solicitar o resultado em duas semanas na
secretaria do SWEP de Belo Horizonte. Lembramos que, neste ano,
ofereceremos apenas cinco vagas.
Boa sorte!
José Cristóvão Filho – Oficial de intercâmbio do Small World Exchange Program (SWEP)
É isso aí! Estou arruinada! Completamente! A louca da minha mãe tinha me ocultado a parte da prova de
seleção! Ela simplesmente me disse que eu teria uma ENTREVISTA! Ok, algumas vezes ela usou a palavra “prova”,
mas eu imaginei que ela estivesse falando no sentido metafórico, como se fosse uma prova que eu tivesse que
enfrentar na minha vida ou algo assim!
Foi isso o que eu disse a ela quando cheguei em casa hoje mais cedo, morta de cansada, depois da tal bateria de
testes! Aí, ela me olhou com a cara mais inocente do mundo e disse: “Filha, claro que eu te avisei que teria uma
prova! Você é que não presta atenção em nada do que eu digo! Eu só não falei para você estudar porque eu sabia
que você já estava perfeitamente preparada para essas provinhas. Você estuda Inglês há cinco anos! Lê a Veja e a
Caras todas as semanas, portanto tem uma boa dose de conhecimentos e futilidades gerais acumulados. E, além
disso, escreve muito bonitinho, eu adoro os seus cartões de aniversário! A única parte com que eu realmente
estava preocupada era com a entrevista, já que você... ah, você não faz muito esforço para ser simpática, não é?
Pois bem. Tenho certeza de que, com esse corte de cabelo e com esse banho de loja que eu fiz você tomar ontem, a
primeira impressão que as pessoas possam vir a ter de você deve ter melhorado consideravelmente! Quantos
candidatos eram mesmo? Seis?”.
Minha mãe não sabe de nada mesmo. Quarenta candidatos! Esse foi o número de inscritos, ou seja, 35 vão ficar
de fora, e eu tenho certeza de que eu estou entre eles!
Agora vou ter que passar a maior vergonha na aula amanhã, porque todo mundo – obviamente – deve estar
achando que eu não fui hoje por causa do tal bilhete da diretora que eu deveria levar assinado! Quando eu explicar
que o real motivo foi a minha PROVA de intercâmbio, vão me perguntar como eu me saí. E aí o que eu vou dizer?
Que eu fui péssima? Eu pensei que pelo menos chegaria amanhã ao colégio toda vitoriosa e, quando as pessoas
viessem me perguntar se eu não tinha tido coragem de mostrar o bilhete, eu faria um ar de indiferença e diria: “Ah,
isso aqui?”, e mostraria a assinatura do meu pai e da minha mãe, e aí eu diria: “Meus pais e eu temos coisas muito
mais importantes para nos preocupar, como o fato de eu estar indo morar no exterior no ano que vem...”.
Só que agora está muito claro que eu vou ter que chegar com o rabo entre as pernas, engolir o olhar sarcástico
da Vanessa e daquelas amiguinhas dela que copiam tudo o que ela faz, entregar humildemente o bilhete para a
diretora que – com certeza – eu terei que aguentar até o final do ano que vem, que é quando eu supostamente irei
me formar. Porque do jeito que as coisas andam, não sei nem se eu me formarei algum dia.
Além de tudo, eu perdi a aula de Biologia hoje. Quando eu concordei em não ir à aula, eu me esqueci
completamente desse detalhe, já que estava tão aliviada por não ter que encarar a diretora e os meus colegas
depois daquela cena. Ou seja, tem quase UMA SEMANA que eu não vejo o Marquinho. Acho que vou morrer de
saudade. Pensei em ligar pra ele, mas a minha mãe grudou no telefone por mais de uma hora e aí ficou tarde. O
lado bom é que, se a Gabi e o Leo tentaram ligar para cá, só ouviram sinal de ocupado. Tinha três recados de cada
um quando eu cheguei da prova, mas eu não estava com a menor vontade de conversar com ninguém (além do
Marquinho).
Tentei refazer a redação da prova, para tentar explicar pra mim mesma o motivo de eu querer ser intercambista,
mas tudo o que saiu foi uma poesia, sem relação alguma com intercâmbio cultural.
Melhor eu ir dormir, talvez no sonho eu descubra uma maneira de fugir do mundo antes de ter que ir pra escola
amanhã...
Angústia
E se eu olho e não me olha,
Não sei bem se isso convém...
Descobrir se é bola, ou fora.
Se é pra ir ou não, além.
Essa falta de certeza,
Que a paixão, no início, tem.
Ora seduz, ora angustia,
Confunde medo com desdém.
A vontade atiça e machuca.
Sem ter-te. Perto. Ter sem.
E eu me declaro, só no pensamento...
Vê se fica esperto, meu bem.
Fani Castelino Belluz
John Keating: Existe um tempo para ousadia e um tempo para cautela, e o homem sábio sabe o momento
de cada um deles.
(Sociedade dos poetas mortos)
Não consegui fugir. Tive que acordar, ir pra aula e enfrentar tudo aquilo que eu já tinha previsto. Só que
apareceu uma novidade na sala hoje. Eu cheguei atrasada (pra variar...) e me sentei perto da Gabi. Quando olhei
para o lado, crente que iria ver o Leo, notei que a carteira dele estava vazia. Olhei pra Gabi e nem precisei
perguntar, ela simplesmente apontou a caneta lá pra frente com uma cara de nojo e eu vi os dois conversando
animadamente, como se a professora não estivesse na sala.
Claro que, com a Vanessa, ninguém implica, já que ela é puxa-saco dos professores todos. Ai se fosse eu que
estivesse conversando assim! Já teria levado uma suspensão, no mínimo! Se eu fosse o Leo, tomaria cuidado. Se
algum professor resolvesse chamar a atenção, a culpa cairia toda sobre ele! Mas parecia que ele não estava muito
preocupado, continuou batendo papo a aula inteira. E o mais impressionante é que a Vanessa parecia estar rindo...
no mínimo estava rindo da cara dele e ele nem percebeu!
Na hora do recreio, a Gabi foi comigo entregar o bilhete assinado para a diretora (por sorte ela não estava lá e
eu pude deixar com a secretária) e, na saída da sala dela, demos de cara com a Vanessa no corredor. Eu olhei para
os lados pra ver se o Leo também estaria por perto, mas ela estava sozinha, conversando com uma menina do
terceiro ano. Quando nos viu, aumentou um pouco o volume da voz: “Pois é, eu não vejo a hora desse ano acabar
também. Eu já passei em tudo, nem precisaria mais vir à aula, mas tenho umas colegas que nem se tirassem nota
máxima em todas as matérias, o que não é o caso, poderiam faltar, pois qualquer desculpa foi motivo para matarem
aula durante o ano... no mínimo vão levar bomba em frequência”.
Eu devia estar mesmo muito nervosa e tinha motivos para isso. Primeiro, pelo caso do palavrão, segundo, pelo
arraso da prova de ontem, terceiro, pelo fato de não ver a paixão da minha vida há SEIS dias e, por último – mas
não menos importante –, por chegar à aula e ver o meu melhor amigo se derretendo pra cima dessa mesma
sirigaita que agora vinha dando indiretas pro meu lado. Por isso, em vez de ignorar (o que seria esperado de mim),
segurei o braço da Gabi para que ela não passasse reto e parei na frente da Vanessa.
“Oi, Vanessa! Desculpe, acabei ouvindo a sua conversa sem querer... mas foi até bom porque nós estávamos
mesmo querendo falar com você”, eu disse, enquanto a Gabi olhava para mim com olhos arregalados. “Sabe a tal
festinha da nossa sala? Então... ela não vai mais poder ser no prédio da Gabi. É que, como você mesma disse,
estamos correndo o risco de tomar bomba, daí com certeza os pais da Gabi e os meus, que são muito amigos uns
dos outros, não aceitarão essa festa lá. Por isso, é melhor cancelarmos o local de uma vez, para que você tenha
tempo de encontrar um outro local do seu agrado...”.
Falei isso com a cara mais irônica que consegui fazer e, em seguida, puxei a Gabi para fora do corredor sem dar
tempo da Vanessa replicar.
Chegamos ao Gulagulosa, e o Leo estava lá, sentado com a Júlia, a Natália, a Priscila e o Rodrigo. Assim que eu
me aproximei, eles me perguntaram sobre a prova de intercâmbio, eu só suspirei e falei que achava que não tinha
dado, mas que poderia tentar novamente no ano que vem, já que a idade limite é 17 anos. Todo mundo ficou tipo
me consolando, menos o Leo, que não só não disse nada para me animar como também pareceu estar sorrindo.
O Leo está me decepcionando mesmo. Além de estar andando com a Vanessa, fica zoando da minha cara. Puxa,
que amigo é esse? Pena que eu não vou passar na tal prova, eu gostaria muito de arrumar um outro melhor amigo
bem longe daqui, para ele ver o que é bom!
A Gabi me contou que, desde ontem, ele e a Vanessa estão grudados. Ela disse que teve um trabalho em grupo
na aula de Educação Religiosa, e, quando o Leo percebeu que eu não viria mesmo à escola, foi lá na frente e
PEDIU pra entrar no grupo dela! O Leo não tem autoestima, não? No mínimo, ela e as amiguinhas deixaram que
ele entrasse por piedade, mas a Gabi disse que não foi bem assim, que elas pareceram bem felizes por ter um
menino no grupo e que eles ficaram rindo tanto durante a aula inteira que a Irmã Imaculada até teve que chamar a
atenção.
Eu perguntei à Gabi por que ela não convidou o Leo pra participar do grupo dela, e ela veio com aquele papo de
sempre, que não gosta de trabalho em grupo já que uma pessoa sempre assume o papel de líder e faz todo o trabalho enquanto os demais integrantes apenas assinam o nome. Por isso, ela sempre faz todos os trabalhos
sozinha.
Não estou nem aí pro Leo. Se ele quiser trocar de melhor amiga, o azar é dele. Se bem que eu acho que estou
me preocupando à toa. Amanhã, certamente ele vai se sentar do meu lado de novo, ele só deve ter sentado lá na
frente hoje porque pensou que eu iria faltar outra vez. É isso aí, eu nem vou ligar pra essa bobeira, afinal, tenho
coisas mais importantes pra pensar, como o fato da Gabi ter me falado também que o Marquinho não deu aula
ontem e que mandaram uma professora substituta no lugar dele.
Será que ele está doente??? Definitivamente, vou ligar para ele hoje à noite. Se ele tiver saído do colégio, quem
vai adoecer sou eu! Só de pensar em tal possibilidade, meu coração já fica descontrolado. Acho que vou até a
farmácia comprar uma aspirina. Se bem que eu acho que esse meu mal não pode ser curado com nenhum
medicamento tradicional. Um tratamento alternativo daria bem mais resultado, tipo receber a visita do Marquinho
todos os dias na minha casa, de preferência em um horário em que não tivesse ninguém aqui... Ai, meu Deus, não
posso ficar pensando nisso. Só de imaginar tal hipótese, os batimentos do meu coração já dobraram a velocidade!
E o meu rosto está todo vermelho!
Não posso esperar até a noite, senão é capaz de eu ter um ataque e precisar realmente de um médico! Vou ligar
pro Marquinho agora mesmo. Prefiro muito mais que um biólogo resolva essa minha doença... Nemo: Desculpe por não ter parado a... Gill: Não, eu é que devo desculpas. Eu estava tão ansioso para
sair, para sentir aquele mar, que estava disposto a colocar você em uma situação de perigo para chegar
lá. Nada vale isso.
(Procurando Nemo)
Ufa! Liguei. Ele não estava em casa. Mas conversei com a moça que atendeu (irmã ou mãe, eu suponho),
perguntei onde eu poderia encontrá-lo e ela disse que ele está viajando, foi para um congresso de Biologia! Que
alívio! E eu fazendo mil suposições desastrosas, imaginando que ele tivesse sido mandado embora, ou pedido
demissão, ou morrido, alguma coisa desse tipo!
Eu ainda estava pensando nisso, com o telefone na mão, quando ele tocou. Tomei o maior susto, por um segundo
imaginei que seria o Marquinho que tivesse chegado em casa e estivesse retornando a minha ligação, mas aí
lembrei que eu não tinha me identificado e que ele não teria como saber que era eu quem tinha ligado pra ele.
Atendi meio com raiva por alguém ter tido a ousadia de me tirar dos meus devaneios.
Era o Leo.
Eu fiquei até feliz, tinha certeza de que ele ia me explicar o motivo de estar agindo de forma tão esquisita, se
aproximando da Vanessa e tudo, mas qual não foi a minha surpresa quando ele disse: “Fani, que história é essa de
você impedir a Gabi de emprestar o prédio dela pra nossa festa?”.
Eu fiquei muda com o susto e ele continuou: “Se você está com ciúmes por eu estar ficando amigo da Vanessa,
deveria descontar em mim, e não castigar a sala inteira!”.
Eu fiquei mais chocada ainda! Só consegui dizer: “o quê?!”.
“A Vanessa só quer o melhor pra todo mundo”, ele continuou. “Você não pode deixar que a sua implicância com
ela atrapalhe as outras pessoas!”
Eu fiquei uns três segundos tentando assimilar o que estava escutando, e, quando eu ia abrir a boca pra me
defender, ele disse: “Eu quero te falar, Fani, que o fato de eu estar convivendo mais com ela não vai me fazer
gostar menos de você. Mas eu tenho que ter outras amizades, você não acha? Se você for fazer intercâmbio no ano
que vem, com quem eu vou andar? Você quer que eu fique sozinho?”.
Eu poderia ter dito que ele estava distorcendo as coisas. Que eu não estava nem aí para ele, que, por mim, ele
poderia andar com quem bem entendesse, que podia até namorar aquela ridícula da Vanessa se ele quisesse e que
eu sabia muito bem que ele devia estar repetindo tintim por tintim as palavras dela, porque eu o conheço bem
demais pra saber que ele nunca suporia uma besteira como essa de eu ter ciúmes dele, e, mesmo que supusesse,
ele nunca me diria isso em voz alta. Eu quis dizer também que ele podia escolher entre todos os alunos (ou alunas)
da escola um novo melhor amigo, porque ele é tão legal e popular que ninguém consegue não gostar dele. E eu
quis perguntar se ele estava se esquecendo da Gabi, da Natália, do Rodrigo, da Priscila, de todos aqueles que são
da nossa turminha há tanto tempo e que ele parece nem considerar como amigos, por esquecer que eles existem e
por não levar em consideração o fato de que todos eles também não gostam da Vanessa. Mais do que tudo isso, eu
quis dizer pra ele que o fato de eu fazer intercâmbio não significa que não seremos mais amigos. Que distância
nenhuma iria diminuir uma amizade como a nossa.
Mas eu não falei nada disso. Eu simplesmente desliguei o telefone. Na cara dele. As lágrimas vieram com força
total e eu só tomei o cuidado de não chorar muito alto para a minha mãe não escutar. Mas aí o telefone começou a
tocar novamente. Claro que eu não ia atender, eu preferia morrer a deixar o Leo perceber que tinha me feito
chorar. De jeito nenhum! Tenho certeza de que ele iria correndo contar pra nova amiguinha dele...
Corri para o banheiro e fiquei escutando aquele toque insistente. De repente, parou. A minha mãe começou a
me chamar, eu fingi que não estava ouvindo. Aí ela passou a me berrar, e eu me fazendo de surda. Depois de uns
15 berros, eu ouvi os passos dela e aí acho que ela percebeu que eu estava no banheiro, porque pegou o telefone
do meu quarto e falou: “Gabriela, acho que ela está tomando banho. A porta do banheiro está trancada e ela não
está me respondendo”.
Ao ouvir isso, eu abri a porta e peguei o telefone da mão da minha mãe, que me olhou primeiro com cara feia e
depois preocupada, ao notar a minha cara de choro. Eu levei o telefone (obrigada, inventor do telefone sem fio!)
pro banheiro e tranquei a porta novamente. Nessas alturas, a Gabi já tinha desligado. Eu liguei de volta e foi só ouvir o “alô” dela que o choro recomeçou.
“Gabiiiii, o Leo brigou comiiiigo!!!! Ele deixou aquela bruxa fazer a cabeça dele e está pensando que nem ela!!
Ele não quer ser mais meu amigo!!!”
Enquanto eu tentava falar isso por entre as minhas lágrimas, a Gabi ficava o tempo todo mandando eu ter
calma, mas eu continuei: “Se ele está pensando que isso vai ficar assim, está muito enganado! Mesmo que eu não
faça intercâmbio, vou mudar de colégio no ano que vem para ficar bem longe dele! E se você quiser virar
amiguinha da Vanessa também, o que eu já saquei que é o seu maior desejo, fique à vontade! Pode emprestar seu
prédio ou o que você quiser pra ela, eu não estou nem aí!”.
Nisso a Gabi estava gritando do lado de lá, tentando falar alguma coisa, e, quando ela viu que não adiantava,
simplesmente desligou! Desligou na minha cara!! Aí é que eu chorei mesmo. Perdi dois amigos em um dia só!
A minha mãe começou a bater na porta, me mandando abrir, perguntando o que tinha acontecido, e eu só
conseguia falar: “Eu quero ficar sozinha, vá embora!”, mas ela não ia, continuava a me pedir para sair do banheiro
e aí, uns quinze minutos depois, uma voz diferente também pediu a mesma coisa. Eu parei de chorar um instante e
então reconheci a voz! Gabi!!
Levantei-me do chão (sim, eu estava sentada no chão), abri a porta correndo e a puxei pra dentro. Eu já ia
fechar a porta de novo, mas minha mãe foi mais rápida. Colocou o pé dentro do banheiro de modo que ou eu o
esmagava, ou a deixava entrar. Acho que eu não tinha escolha. Ela empurrou a porta, ficou olhando pra mim, eu
fiquei olhando pras duas e aí a choradeira veio vindo de novo e mais uma vez eu não consegui segurar.
Minha mãe fechou a porta, me abraçou, a Gabi fez a mesma coisa e ficamos nós três abraçadas no meio do
banheiro, até o meu choro diminuir um pouco. Então a minha mãe prendeu o meu cabelo em um rabo de cavalo,
molhou uma toalha e passou no meu rosto todo, eu fui me acalmando, e aí foi a Gabi que falou primeiro: “Será que
a gente podia conversar agora?”. Ao que a minha mãe emendou com um: “Será que eu posso saber o motivo do
choro primeiro?”.
Eu devo ter feito uma cara de quem ia começar de novo, porque ela de repente abriu a porta e disse: “Faz o
seguinte, vocês ficam aí trancadas e conversam o que querem conversar, e enquanto isso eu vou preparar um
lanche para nós. Aí, depois, se vocês quiserem satisfazer a minha curiosidade, eu vou ficar muito grata. Quem sabe
eu possa ajudar?”, e saiu, nos deixando sozinhas.
Eu fiquei com a cabeça baixa um tempo, aí olhei pra Gabi e ela pegou minha mão e me puxou pra fora do
banheiro. Fomos para o meu quarto, ela fechou a porta, sentou na minha cama e ficou esperando que eu falasse
alguma coisa.
Como eu não disse nada, ela começou: “Fani, o que eu estava tentando te falar ao telefone era que o Leo
também me ligou, logo depois que ligou pra você, e disse as mesmas bobeiras. Dos ciúmes com que ele acha que
você está, do fato de ter que ficar sozinho depois que você viajar e tal. Sabe o que eu fiz? Passei o maior sermão
nele!”, ela disse, com cara de brava. “Falei que ele, como suposto melhor amigo, deveria era te dar força nesse
momento, te consolar se você não passar na prova do intercâmbio ou te incentivar se você for mesmo viajar! E o
que ele está fazendo ao invés disso? Está se afastando, mudando de turma, te deixando confusa, sem suporte
emocional... falei pra ele, inclusive, que desse jeito não seria um intercâmbio que acabaria com a amizade de
vocês, e sim a atitude dele, os ciúmes DELE! Porque, se acaso você não percebeu, se tem alguém com ciúmes
nessa história, essa pessoa é o Leo! Desde que você começou a falar que tinha a possibilidade de viajar, ele está
diferente, não reparou? Morrendo de medo de você – bem longe da vista dele – arrumar outros amigos, paqueras,
namorado e esquecer que ele existe... E foi isso tudo o que eu disse pra ele e que estava querendo te explicar ao
telefone!”
Eu fiquei tentando assimilar aquilo, a Gabi tinha falado pro Leo tudo o que eu queria falar, mas ainda assim
alguma coisa estava me incomodando, e aí eu saquei que era o fato dela continuar batendo nessa tecla de que o
Leo gosta de mim; se não fosse assim por que o motivo dos ciúmes?
Eu ia abrindo a boca, mas ela falou antes.
“Fani, eu queria também te pedir desculpas pela minha atitude naquele dia, por ter oferecido o salão de festas
pra Vanessa e tal...”, ela falou sem olhar pra mim, visivelmente constrangida. “Eu acho que eu também fiquei um
pouquinho enciumada, não pelo seu intercâmbio, mas por achar que você queria realmente começar a andar com
ela e pudesse descobrir que eu não sou tão legal assim como você acha... sabe, antes de você mudar pro colégio,
eu andava meio com todo mundo e com ninguém ao mesmo tempo, não tinha uma amiga de verdade pra
compartilhar os segredos, passar bilhetinhos e fazer a aula ficar mais legal...”
Ela abaixou o olhar um pouco e continuou, completamente sem graça: “Então, antes de você aparecer, eu não
sabia o que estava perdendo, mas agora eu sei, e foi por isso que eu agi daquele jeito, não queria ficar de fora, não
queria perder sua amizade mesmo que para isso eu precisasse de me tornar amiga da Vanessa também... e é por
isso que eu entendo um pouco o Leo... acho que ele está fazendo isso inconscientemente pra te punir, pra te dar
uma lição, como se quisesse te dizer: ‘olha, você pode viajar, fazer outros amigos, mas eu também posso, tá
vendo?’”.
A Gabi tem mesmo que fazer vestibular pra Psicologia! Caramba, eu não ia pensar essas coisas nunca! Eu
simplesmente achei que os dois tivessem enlouquecido por estarem querendo andar com a Vanessa, nunca pensei
que era meu suposto intercâmbio que fosse o culpado de tudo isso!
Eu sorri pra Gabi, dei um abraço nela, e nós duas ficamos assim, até que minha mãe entrou no quarto e disse
que o lanche estava pronto. A gente foi correndo pra mesa, afinal, minha mãe fazer lanche é um evento que só
acontece uma vez na vida!
Realmente, parece que essa história de intercâmbio está mudando muita gente...
Dodó: Toby, você é o meu melhor amigo. Toby: E você é o meu também, Dodó. Dodó: E nós vamos
ser amigos para sempre, não vamos?Toby: É. Para sempre.
(O cão e a raposa)
Cheguei na aula hoje e a primeira coisa que eu vi foi que o Leo continuava sentado perto da Vanessa. Senti uma
coisa meio ruim por dentro, realmente eu gostava de tê-lo por perto... fiquei lembrando do dia em que a gente se
conheceu.
Era meu terceiro dia no colégio novo. A única pessoa que conversava comigo na sala era a Gabi, mas ainda não
éramos propriamente “amigas”, apenas simpatizávamos uma com a outra. Era o primeiro horário, e lembro
perfeitamente que a Irmã Imaculada estava explicando sobre o cronograma anual e eu estava desenhando umas
florzinhas no caderno, lamentando o fato de não terem me colocado na sala da Natália, que – além dela que eu já
conhecia – parecia ter muito mais gente legal e menos “panelinhas” como na sala em que eu fiquei.
Foi quando, quinze minutos depois da aula começar, bateram na porta e, em seguida, um menino que não tinha
vindo nos dois primeiros dias de aula, com o cabelo todo atrapalhado, parecendo que tinha vindo pro colégio de
moto ou algo assim, colocou só a cabeça pra dentro da sala e falou: “Dá licença, Irmã?”, com um sorrisinho meio
sem-vergonha.
Ela nem parou de falar, só fez sinal para que ele entrasse, e eu pensei que fosse normal todo mundo entrar na
hora em que bem entendesse... mas, para minha surpresa, um minuto depois chegou um outro menino e ela passou
o maior sermão nele sobre como alunos atrasados atrapalham a aula por desviar a atenção da sala inteira e falou
que ele ia ter que esperar o próximo horário para entrar. Eu fiquei meio admirada pela diferença do tratamento
dela em relação aos dois alunos, mas aos poucos eu fui percebendo que não só os professores, mas todo mundo
tratava aquele menino do cabelo atrapalhado (que depois eu descobri que era o normal do cabelo dele) meio
diferente, como se ninguém conseguisse brigar com ele por motivo algum.
No intervalo entre a primeira e a segunda aula, nesse mesmo dia, eu estava conversando com a Gabi, quando o
tal menino chegou por trás.
“Não vai me apresentar pra sua nova amiga, não, Gabi?”, ele perguntou.
“Como se você não fosse se apresentar de qualquer jeito...”, a Gabi falou. E, virando para mim, disse: “Leo –
Estefânia, Estefânia – Leo”.
Eu, na mesma hora, fiz uma careta quando ouvi aquele “Estefânia”, mas aí o Leo disse: “Esse nome é meio
grande, tem algum apelido?”.
“Fani!”, eu respondi aliviada.
Ele deu um sorriso bonitinho e falou: “Ah, combina bem mais com você! Muito prazer, Fani!”.
Foi amizade à primeira vista.
A partir daí, não nos desgrudamos. Eu, que não tinha nenhum amigo nesse novo colégio, de repente me vi com
dois: Gabi e Leo. Os melhores amigos que alguém poderia escolher.
E foi por isso que me deu essa tristeza ao constatar o afastamento dele... tipo, o Leo é superpopular, é amigo de
todo mundo, se dá bem com todos os grupos, mas eu me sentia meio que preferida, quem ele escolhia para sentar
junto, fazer os trabalhos, compartilhar o recreio, passar bilhetinhos... e agora estou me sentindo assim, um pouco...
traída.
Engraçado pensar isso, traição de amigo. Nós não temos nenhum contrato, compromisso, não somos sócios,
casados, namorados... nada. Apenas amigos. Mas ainda assim eu estou me sentindo um pouco passada pra trás,
trocada...
Foi isso que eu fiquei pensando durante a aula inteira, até que, no último horário, para o meu alívio e felicidade
completa, o Marquinho entrou na sala, todo bronzeadinho, mais lindo do que nunca! Eu não pensei em mais nada.
Ele fez a chamada, como sempre demorou um pouco mais do que o necessário naquela olhadinha na hora do
meu nome, e explicou que esteve ausente porque estava participando de um congresso de Microbiologia em
Fortaleza (está explicado aquele bronze todo!). Depois se levantou, começou a ensinar a matéria e eu babei a aula
inteira. Ele estava tão lindo com aquela calça branca, sandália de couro e blusa de listrinha... e além disso hoje ele ainda estava com uma tiarinha (deve ter comprado em Fortaleza) no cabelo, para não deixar a franja cair no olho...
simplesmente perfeito.
A aula acabou, eu dei um jeito de ser a última a sair da sala, junto com ele, fomos andando lado a lado até o
local onde a gente inevitavelmente tem que se separar (ele vai pra sala dos professores, e eu pra saída de alunos),
e aí ele virou pra mim e perguntou: “Quais são os planos para o fim de semana, Estefânia?”.
Eu engasguei, gaguejei e consegui falar que não sabia ainda, que talvez fosse ao cinema... aí eu estava crente
que ele iria me desejar “bom filme” e dar tchau, mas ele continuou: “Ah, você gosta de cinema? Que estilo?”.
Eu não podia falar pra ele que eu gostava de “filme de amorzinho”, né? Aí eu fiz uma cara de pensativa e disse:
“Ah... um pouco de tudo... ficção, comédia, arte...”, e aí ele abriu um sorriso e disse que, já que eu gostava de
filmes de arte, não poderia perder um filme que estava reprisando numa mostra de cinema iraniano.
“Filhos do paraíso”, ele disse o nome. “Não deixe de assistir. Quero saber o que você achou depois.”
Eu só consegui fazer que sim com a cabeça, ele sorriu e, aí sim, deu tchau e me deixou no corredor, que nem
uma boba, esperando que ele desaparecesse pra dentro da sala dos professores.
Cheguei em casa e liguei pra Gabi antes mesmo de almoçar. Falei que ela PRECISAVA ir ao cinema comigo no
domingo, já que eu sabia que ela estava indo pro sítio da família dela ficar sexta e sábado. Ela concordou,
perguntou se eu já tinha resolvido a nossa dúvida cruel entre assistir primeiro A sogra ou Amor em jogo, mas eu
falei para ela que não era nada disso... o filme que ela iria ver comigo era outro bem diferente: Filhos do paraíso!
Vivian: Eu agradeço todo esse jogo de sedução que você está fazendo, mas deixa eu te dar uma
dica: eu já estou garantida.
(Uma linda mulher)
Tem algo de triste nas noites de domingo. Mesmo quando a gente aproveitou (ou descansou) o fim de semana
inteiro, domingo à noite sempre tem um ar de melancolia. Acho que é por causa da segunda-feira iminente e o fato
da gente ter que esperar tantos dias até o próximo fim de semana.
Eu sempre ficava meio deprimida nessa hora, mas dessa vez foi diferente...
Eu e a Gabi fomos ao cinema, vimos o tal filme indicado, depois de eu ter ficado uma hora e quarenta minutos
tentando convencê-la a ver um filme não comercial. Na verdade, eu nunca fui fã de filmes de arte, mas se o
Marquinho falou, com certeza devia ser bom. E nos surpreendemos! Ficamos completamente encantadas com a
singeleza desse filme (cinco estrelinhas), pensando sobre todos os filmes desse gênero que a gente deve ter
perdido por puro preconceito, por achar que só os filmes de Hollywood é que mereciam o preço do ingresso...
De lá, sentamos na sorveteria e começamos a conversar. A Gabi me perguntou quem realmente tinha me falado
do tal filme, que ela sabia perfeitamente que não tinha sido o meu irmão, já que com três filhos bagunceiros ele
mal tem tempo para ver um DVD, que dirá ir ao cinema. Dei um suspiro e contei para ela a história do corredor,
que o Marquinho tinha me dito que esse filme era imperdível e que ia querer ouvir meus comentários depois.
A Gabi ficou um tempo me olhando, de repente levantou, pagou a conta dela, e falou: “Vamos lá em casa um
pouquinho?”.
Fui, sem argumentar, já que quando a Gabi fica meio misteriosa assim é melhor concordar de uma vez, senão ela
desiste de contar a ideia ou o que quer que seja que estivesse na cabeça e quem fica curiosa depois sou eu.
Chegando lá, fomos para o quarto dela, e ela, sem falar nada, pegou o aparelho de telefone e colocou na minha
mão.
Eu fiquei olhando sem entender.
“Liga!”, ela falou.
“Como assim? Pra quem?”, eu perguntei, realmente sem saber.
“Você sabe muito bem pra quem!”, ela respondeu. “Liga logo pra ele, senão eu não deixo você sair da minha
casa hoje. Já que é pra você ficar nessa obsessão, que pelo menos seja por uma coisa real, que você descubra mais
sobre ele e não fique apenas nesse platonismo aluna-professor! Anda, liga logo!”
Eu tentei argumentar que não lembrava o telefone de cabeça, mas ela disse que tinha certeza de que eu sabia
de cor e salteado e que, se eu não ligasse logo, ela ia ligar para a Natália e contar da minha paixão e que aí todo
mundo do colégio ia ficar sabendo rapidinho...
Chantagem não, né? Eu fechei a cara, falei que ela não podia me ameaçar, mas aí ela falou: “Fani, isso é sério...
eu realmente queria que você ligasse para ele na minha frente, para eu ver até que ponto isso é real ou é coisa da
sua cabeça... você é meio... sonhadora! E você sabe disso...”.
Eu fiquei olhando para ela e para o telefone e, por orgulho, pra provar pra ela que eu não estava inventando
coisíssima nenhuma, liguei. E ainda coloquei no viva voz. A Gabi pegou o gravador dela e apertou “REC”. Fiz essa
transcrição depois para pregar na minha agenda, pois essa foi uma noite de domingo que eu não quero nunca mais
esquecer... TELEFONEMA “FANI – MARQUINHO”.
Domingo – 17 de novembro – 20h07 às 20h21
Marquinho: Alô?
Fani (alterando a voz): Poderia falar com o Marco Antônio?
Marquinho: É ele!
Fani: Oi...
Marquinho: Quem está falando?
Fani: Eu.
Marquinho: Eu quem?
Fani: Eu...
Marquinho: Ah, lembrei! A menina misteriosa!
Fani: A-hã...
Marquinho: Puxa, achei que você tivesse se esquecido de mim...
Fani: Tsc, tsc, tsc.
Marquinho: Lembra do nosso combinado? De você falar pelo menos um pouquinho mais a cada telefonema?
Fani: A-hã...
Marquinho: Então...
Fani: (suspiro)
Marquinho: Já sei. Vou fazer umas perguntas e você me responde com “sim”, “não” ou “não sei”, pode ser?
Fani: Sim.
Marquinho (rindo): Ok! Primeira pergunta: Você é minha vizinha?
Fani: Não sei! Onde você mora?
Marquinho: Nada disso... hoje só eu faço perguntas, de uma outra vez a gente troca, combinado?
Fani: Sim...
Marquinho: Bom, se você não é minha vizinha... você é minha colega de violão?
Fani: Você toca violão?!
Marquinho: Já entendi que a resposta é não. Próxima pergunta: Você é amiga da minha irmã?
Fani: Você tem irmã?
Marquinho: Acho que isso não está dando certo... se você não seguir a regra de só responder o que eu pergunto em vez de ficar perguntando também, eu vou parar com o
jogo.
Fani: Tá, desculpa.
Marquinho: Você é minha aluna?
Fani: ...
Marquinho: Oi, tem alguém aí?
Fani: Sim.
Marquinho (meio rindo): Sim o quê? Tem alguém aí ou você é minha aluna?
Fani: Sim, sou sua aluna. Mas não estou achando esse jogo justo. Por que eu não posso perguntar também?
Marquinho: Porque fui eu que o inventei... e também porque agora você tem desculpa para me ligar de novo amanhã e inverter os lugares! Combinado?
Fani: Ok... mas acho que eu saí perdendo...
Marquinho: Que nada, você ainda está ganhando. Você sabe quem eu sou, que eu tenho irmã, que faço aula de violão, que sou professor de Biologia... e eu só sei que você
é minha aluna! Mas nem sei de que série e de que colégio... humm, pensando bem acho que vou fazer mais umas perguntinhas...
Fani: Não, por hoje é suficiente. Tenho que desligar. Está tarde.
Marquinho: Ok, menina misteriosa... muito bom te ouvir de novo... posso esperar seu telefonema amanhã?
Fani: ...
Marquinho: Tá bom, não vou te pressionar. Mas eu gostaria muito que você ligasse... estou adorando te conhecer melhor....
Fani: (suspiro)
Marquinho: Um beijo pra você!
Fani: (som de beijo estalado)
FIM
Eu desliguei e olhei pra Gabi com a maior cara de “bem feito!”, já que provei que não estava mentindo ou
sonhando quando disse que ele me dava papo.
Ela ficou pensando um pouco, mas concordou comigo, falou que ele realmente parecia muito disponível, mas
que era mesmo pra eu ligar amanhã e fazer um monte de perguntas, já que ele mesmo sugeriu isso. Eu disse que
era isso mesmo que eu ia fazer, e aí a Gabi mudou completamente de assunto: “Fani, e sobre o Leo?”.
Eu, que ainda estava nas nuvens, nem lembrando do resto do mundo, só perguntei: “O que é que tem o Leo?” E
ela: “Você vai deixar ele se afastar assim, sem fazer nada a respeito?”. Eu suspirei, pensei um pouco e falei: “Sabe, Gabi, se tem alguém se afastando, esse alguém é ele. E se alguém
tem que fazer algo a respeito é ele também. Eu continuo como sempre fui, no mesmo lugar”.
Aí ela se levantou e disse meio brava: “Fani, sinceramente, acho que não importa quem está se afastando, o que
importa é a amizade que pode ficar bem prejudicada nessa história toda... sinceramente, se você estivesse se
distanciando de mim, eu faria alguma coisa, te procuraria pra conversar e tal... não ia deixar um mal-entendido ou
sei lá o quê separar a gente, acabar com a nossa amizade!”.
Saí da casa dela pensando que eu tinha muito mais coisas na cabeça para me preocupar naquele momento do
que com as crises do Leo. Como, por exemplo, o fato de que, no final do semestre, podemos ir sem uniforme no
colégio, e eu ainda tinha que decidir com que roupa iria à aula no dia seguinte para o caso de passar pelo
Marquinho no corredor... Faye: Eu costumava pensar que você era verdadeiro quando sorria. Mas agora eu sei que não
era nada disso.
(The Wonders – O sonho não acabou)
Segunda-feira é o pior dia da semana para mim. Eu fico meio “zumbi”, apenas respirando, ligada no automático.
E exatamente hoje, parece que todas as pessoas do mundo resolveram requerer minha atenção.
Vem chegando o final do ano e os professores começam a correr com a matéria, como se a gente fosse obrigado
a aprender em duas semanas tudo o que eles não conseguiram ensinar no ano inteiro.
No meio da aula de História, um bilhetinho aterrissou na minha carteira. Eu achei que só poderia ser da Gabi, já
que o Leo continuava sentado lá frente, do lado da bruxa, ops, da Vanessa.
Mas eu estava enganada. O bilhete era do Alan, um menino que senta lá no fundão, na turma dos bagunceiros.
No começo do ano, ele usava óculos com uma das lentes quebrada. Quando perguntamos onde ele tinha quebrado,
ele disse que era ÓBVIO que tinha sido na arquibancada do Mineirão, em um dia de jogo Atlético x Cruzeiro. A
partir daí, a gente ficou com mania da palavra “óbvio”, em homenagem a ele, ou aos óculos dele, sei lá...
O bilhete vinha escrito assim:
O que tá rolando entre você e o Leo? Vocês brigaram? O cara tá muito estranho. Não apareceu pro
futebol no sábado. Liguei pra casa dele e ele estava dormindo, com o dia ensolarado que estava
fazendo! Acho que sua companhia fazia bem melhor pra ele do que a dessa patricinha com quem ele
está andando agora. Faça algo a respeito. Alan.
Eu li umas cinco vezes, mostrei pra Gabi, ela leu, levantou uma sobrancelha, devolveu pra mim repetindo a frase
do fim do bilhetinho: “Faça algo a respeito!”, e eu fiquei ali com aquele bilhete na mão sem saber o que responder
ou o que fazer. Realmente eu não queria perder a amizade do Leo, mas também não estava a fim de ir lá e trazer
ele à força de volta pro meu lado. Isso tinha que partir dele. Eu não fiz nada de errado.
O sinal bateu e fui com a Gabi pro Gulagulosa. A Natália também chegou, sentou ao meu lado e veio com essa:
“Fani, adivinha quem a Júlia e eu encontramos no Barbican na sexta-feira?”.
Eu, que nem sabia o que era esse tal de Barbican, fiz uma cara de completo desinteresse.
“Você sabe, o barzinho novo que abriu lá no Seis Pistas...”, ela continuou, mesmo sem eu ter respondido. “Foi
inauguração sexta-feira e só entrava quem tivesse convite. Eu consegui dois porque fiquei amiga do porteiro, que é
o mesmo da Pizzaria Finna, mas fiquei sabendo que realmente estava bem difícil de conseguir, eu nem esperava
encontrar muita gente conhecida lá, além do Mateus, é claro, que eu sei que está em todos os eventos badalados
da cidade...”
Enquanto ela ia falando, eu ia comendo o meu pão de queijo tentando armazenar na minha cabeça as palavras
dela e conciliar com vários outros pensamentos que estavam me atormentando:
1. Um plano para “fazer algo a respeito” sobre o distanciamento do Leo.
2. As lembranças do telefonema pro Marquinho na noite passada.
3. As notas que eu precisava tirar nas provas finais daqui a duas semanas.
E aí, de repente, ela começou a contar um caso, que tinha finalmente conseguido chegar na pista de dança onde
o Mateus deveria estar e, diferente dele, a primeira pessoa que ela avistou foi o Leo.
Nessa hora eu saí dos meus devaneios, desliguei de todos os meus outros pensamentos e só falei: “O Leo?!”, e
ela: “Exatamente. Isso não seria nada estranho, já que o Leo também está em todas, só que desta vez ele não
estava sozinho...”.
Ela parou de falar, como se estivesse esperando que eu perguntasse com quem ele estava. A Gabi me poupou e
perguntou antes: “E com quem ele estava, você pode satisfazer a nossa curiosidade?”.
A Natália só apontou com a cabeça para o outro lado da rua e todos nós vimos. O Leo e a Vanessa estavam
sentados juntinhos, sozinhos, em um dos banquinhos da pracinha que fica na frente do colégio. Eles pareciam estar se divertindo muito, conversando sobre alguma coisa engraçada, mas que para mim não estava tendo graça
nenhuma.
Veio vindo um sentimento de raiva misturada com tristeza (a Gabi mais tarde me falou que isso é o nome que se
dá para ciúmes, apesar de eu não concordar), e eu engoli o resto do meu pão de queijo a seco mesmo e só
perguntei: “Eles estão ficando, namorando ou alguma coisa assim?”.
“Bom, eu esperava que você me respondesse a essa pergunta”, a Natália falou, “é o que todo mundo quer saber,
e eu achei que, se alguém soubesse essa resposta, esse alguém seria você, já que é a melhor amiga dele...”
Eu joguei meu copo vazio e o guardanapo no lixo, olhei pra ela e falei: “Era!”.
Levantei e fui andando de volta pro colégio. Um segundo depois, a Gabi me alcançou e foi aí que ela falou que
eu estava com ciúmes e que isso não era vergonha, que eu tinha que descobrir o que estava acontecendo entre os
dois para poder entender melhor até os meus próprios sentimentos.
Eu falei pra ela que meu único sentimento era de que eu era uma boba, que se deixou ser enganada esse tempo
todo achando que o Leo era uma pessoa quando na verdade ele era outra, porque aquele menino legal, gente boa,
fofo que ele era, não era o mesmo desse ridículo que estava babando pela menina mais chata do colégio.
Entrei na sala e fiquei o resto da aula apenas me concentrando em prestar atenção na explicação dos
professores, uma vez que minha vida já estava complicada o suficiente sem ter também que tomar bomba em
alguma matéria! Sr. Incrível: Por que você está aqui? Como é possível que você me ponha ainda mais pra baixo? O
que mais você pode tirar de mim?
(Os incríveis)
Eu não ia ligar para ele. Não ia mesmo. Ia continuar com aquela minha tática de aparecer e sumir para ele ficar
cada vez mais curioso. Só que eu cheguei em casa ontem tão chateada que eu precisava de uma compensação. Fui
para a aula particular de Física e minha professora até perguntou se eu estava doente, de tão calada que eu
estava. Na academia não foi diferente. Concluí só minha série básica de musculação e nem entrei na aula de
spinning porque eu queria chegar em casa mais cedo.
Tomei um banho a jato enquanto esperava dar seis e meia da tarde, que é a hora da aula de Francês da minha
mãe e quando o meu pai ainda não chegou do trabalho, para não correr o risco de alguém pegar na extensão e
falar meu nome por algum motivo.
Só que dessa vez o Marquinho não me pareceu tão disponível quanto das outras. Eu sabia que devia ter dado
pelo menos uns dois dias entre um telefonema e outro para ele não se cansar! Mas foi ele mesmo que tinha pedido
para eu ligar...
O que aconteceu foi o seguinte, uma moça atendeu, a mesma da vez em que ele estava viajando, e ficou me
perguntando “quem queria falar com ele” e “o que eu era dele”. Eu respondi “uma amiga” às duas perguntas, e aí
ela o chamou, com uma voz bem grosseira, se quer saber minha opinião!
Aí ele atendeu. Normalmente, ele fica todo meloso, me chama de “menina misteriosa”, mas dessa vez ele não fez
nada disso. Falou “alô” e eu falei “alô” de volta. Aí ele perguntou quem era, eu falei “eu”. Ele ficou mudo um tempo
e então disse: “Ah, é você”, sem a menor empolgação.
Eu fiquei meio sem jeito e não falei nada, aí ele perguntou sem paciência: “O que você quer?”.
Eu respirei fundo e me forcei a dizer: “Er... você pediu pra eu te ligar hoje pra gente continuar o jogo...”.
Ele nem esperou eu terminar a frase e disse: “Escuta, eu estou muito ocupado, não tenho tempo pra isso agora”.
E desligou na minha cara, sem falar tchau nem nada!
Eu fiquei completamente atordoada. Com vergonha total de ter me sujeitado a uma situação dessas! Isso que dá
escutar os outros! Tudo culpa da Gabi, que fica colocando pilha pra eu ligar pra ele, conversar com ele, conhecê-lo
melhor depressa! Que raiva! Eu não estou com pressa! Eu tenho todo o tempo do mundo! Agora também vou
telefonar pra ele só na outra encarnação!
Peguei meus livros para terminar meu dever de Matemática, e a campainha tocou. Achei estranho, já que o
porteiro não tinha anunciado ninguém. Isso só acontece quando é alguém muito conhecido, mas quem poderia ser?
E lá fui eu, de roupão e toalha na cabeça atender. Olhei pelo olho mágico e até me assustei!
Era o Leo.
Abri a porta, tentando ao mesmo tempo tirar a toalha dos cabelos e fechar o roupão um pouco mais e ficamos os
dois, olhando um para o outro sem dizer nada. Até que ele perguntou se podia entrar, eu dei passagem pra ele –
ainda sem dizer uma palavra – e aí pedi licença para trocar de roupa, mas ele disse que não precisava, que não ia
demorar.
Eu fiquei meio sem graça com aquela situação, meio preocupada dos meus pais chegarem e me encontrarem ali
no meio da sala de roupão com um menino (tá, o menino era o Leo, mas ainda assim era um menino!), mas aí ele
começou a falar: “Fani, eu vim aqui pra te falar umas coisas, antes que você escute pela boca de outras pessoas...”.
“Hum”, eu disse, esperando ele continuar.
E ele continuou: “Porque eu não sei o que aconteceu, mas de repente tudo ficou diferente entre a gente...”.
Ao dizer isso, ele meio que deu uma risadinha, não sei se pela rima não intencional ou por aquela situação
constrangedora mesmo. Eu continuei sem falar nada, mas sentei no braço do sofá, esperando o que mais ele ia
dizer.
“Em um dia você era a minha melhor amiga, e no outro passou a nem olhar para a minha cara...”
Nessa hora eu mudei de expressão, ia começar a protestar, a dizer que era ele quem tinha se afastado, mas ele
fez sinal para eu esperar que ele terminasse.