Ela estava sentada na sacada quando ele entrou. Felipe afrouxou a gravata e jogou a maleta sobre a cama, mas mesmo assim ela não saiu de seus devaneios. Ele caminhou até ela e se colocou de joelhos à sua frente. Achava aquilo romântico. Tocava delicadamente as pernas dela, sentindo o calor de sua pele sob a meia-calça. Ana Júlia afastou seus pensamentos, voltando a atenção para o homem que beijava seus joelhos.
— Uma moeda pelos seus pensamentos. — Felipe mirou os lábios dela e ela o beijou com um sorriso constrangido.
— Eu estava pensando sobre... Ah, deixe pra lá, Felipe. Não era nada importante.
— Agora quero saber. — Ele a beijou mais uma vez e se levantou, tirando a gravata e abrindo os botões de sua camisa.
Ana Júlia o observou, os olhos negros curiosos como sempre. Parecia ver além do homem ali, tentando entrar por baixo de sua pele, tocar sua alma com aquele olhar. Felipe a observava pelo canto dos olhos, já acostumado com aquela atenção da mulher.
— Acho que a gente precisa conversar... Sobre o casamento.
Era a primeira vez que Ana Julia trazia aquela pauta. Pela forma que falara, Felipe se assustou. Tudo estava certo para o casamento, tudo ocorrera surpreendentemente bem, desde o pedido depois de anos de namoro, até as escolhas para a cerimônia. Talvez ela tivesse mudado de ideia e agora quisesse algo mais elaborado, além de simplesmente se casarem no civil como haviam pedido. Ana Júlia às vezes era uma incógnita para ele. Era ao mesmo tempo discreta, mas adorava sair da caixinha e usar seus imensos vestidos que chamavam atenção e geravam comentários por onde passava. Era sempre quieta, mas quando falava, não deixava suas palavras serem desperdiçadas. Ana Júlia parecia uma personagem perfeitamente construída em qualquer romance clássico e aquilo era uma das coisas que fazia Felipe amá-la tanto.
— Pelo seu tom, não sei se vou gostar da conversa. Está pensando em terminar o noivado e cancelar o casamento?
— Não, Felipe, não é isso. Mas talvez seja o que você queira depois que eu disser o que venho pensando há algum tempo.
— Está me preocupando. Aconteceu alguma coisa, querida?
Ana Júlia se ergueu e o puxou pela mão. Sentaram-se os dois sobre a cama de casal, um de frente para o outro. A mulher cruzou as pernas e ficou em uma posição mais confortável.
— Nós estamos juntos há muito tempo, mas tem uma coisa que sempre me... inquietou. Eu preciso que você me escute de coração aberto, sim? Eu nunca falei isso para ninguém e acho que precisa saber antes que nos casemos.
— Você fala como se tivesse alguma doença terminal ou algo assim.
— Não é como se os outros não achassem isso — Ana Júlia sussurrou para si mesma, conversando em voz alta como fazia às vezes quando pensava não estar sendo observada. — Sabe quando você é criança e começa a ver filmes e mais filmes onde um casal só encontra o final feliz depois que ficam juntos?
— Mas é claro! Todo filme da Dis...
— E quando você assiste qualquer animação ou série ou filme ou curta... E tudo parece terminar em romance? Como se fosse a única coisa que um ser humano poderia querer na vida, nossa única finalidade...
— Eu sei, Juju, mas por que está me falando tudo isso?
— É que... Eu não consigo sentir isso. Não consigo entender tudo isso.
— O que está dizendo?
— Eu não sei o que é me apaixonar, Felipe. — Ana Júlia fez uma pausa, lágrimas vindo aos olhos como se fosse doloroso demais falar aquilo. Respirou fundo, voltando ao eixo. — Entende? Não é natural para mim, não é algo que consiga entender. Nunca entendi. Passei minha vida inteira achando que eu era estranha e errada, que havia algum problema comigo e eu poderia apenas... fingir ser quem não sou. E parece até piada pensar que depois de décadas vivendo assim, eu finalmente descobri o que eu era em um maldito fórum na internet.
— Pera, pera! Isso quer dizer que você não me ama?
Felipe se levantou e passou a caminhar de um lado para o outro, os dedos entre os fios claros do cabelo. Ana Júlia abaixou os olhos para as mãos sobre suas pernas cruzadas, não querendo ficar ainda mais ansiosa com o movimento dele.
— Claro que não! Eu sei que parece complicado de entender, é complicado tentar explicar também quando não se sente a mesma coisa. Mas eu te amo muito, Felipe. Só que... Lá no passado, quando a gente começou a namorar, eu aceitei porque pensei que pudesse me curar. Nós sempre fomos amigos muito próximos e eu amava você assim. Meus pais sempre falavam que um dia a gente ia se casar do tanto que andávamos juntos, porque menino e menina não podem ser amigos, claro. E eu pensei que fosse resolver meu "problema". — Ela cortou as aspas no ar. — Sempre acreditei que nunca seria feliz se não arrumasse alguém para namorar. Que nunca seria amada de verdade e morreria sozinha no futuro. Isso me matava por dentro. Então pensei que milagrosamente um dia eu ia entender o que era me apaixonar. Se eu fingisse direitinho, se eu cobrisse esta falta aqui dentro com alguma coisa...
— Então você só me usou para cobrir "o que faltava"? — Ele soltou um risinho de depreciação. Ria de si mesmo, pensando no quanto estava sendo idiota.
— Claro que não! Isso foi no início, eu só queria... ver se conseguia sentir. Não me entenda mal, querido, eu nunca te usei. Eu gosto de você, gosto de ficar perto de você e nossa amizade me fez a pessoa mais feliz do mundo. E no fim, te namorar foi uma das melhores coisas que fiz na vida. Porque você me entende, a gente se entende... E eu amo pensar que vou ter você quando voltar para casa. Só que... Não é exatamente como você vê as pessoas falando sobre amor romântico. Pode parecer confuso e talvez eu esteja complicando ainda mais as coisas...
— Está sim. O que você quer dizer com tudo isso, Ana Júlia? Quer que eu desista do nosso casamento?
— Eu só queria que você soubesse disso. — Ela se ergueu e pegou as mãos dele, fazendo-o parar de caminhar. — Eu te amo muito, Felipe. Mais do que amei qualquer pessoa. E pode ser que não seja da mesma forma como me ama e talvez eu nunca sinta isso, mas você me faz feliz e quero te fazer feliz também... Por isso precisei deixar tudo bem claro. Eu amei todos os minutos que passei com você e nada disso foi forçado para mim. Amo sua companhia e amo você. Mas eu vou entender se achar que...
— Já está tarde. — Ele soltou as mãos da dela. — O dia foi cansativo e eu quero me arrumar para dormir. Depois conversamos.
— Está bem. — Ela suspirou.
Felipe entrou no banheiro para se lavar e ela se trocou para o pijama. Foi para a sala e colocou qualquer filme que apareceu no streaming. Aninhou-se ali e ficou observando as imagens passar sem realmente compreendê-las.
Na manhã seguinte, o rapaz acordou cedo como sempre. Notou que Ana Júlia não estava ao seu lado da cama, havia dormido tão confuso que nem notara. Encontrou ela deitada no sofá.
Ele se sentou na poltrona ao lado e a observou dormir. Era apaixonado pela forma como dormia calmamente, como se o mundo não existisse ao abrir os olhos. Seu peito pulava e chegava a doer. Pensando naquilo, depois de toda a conversa da noite anterior, chegava a ser cômico como sentia as borboletas de seu estômago ainda se revirando quando pensava nela. Amava aquela mulher há tanto tempo, mas ainda se sentia como da primeira vez que se beijaram. Foram anos de muita felicidade com ela e queria que ficasse ainda muitos anos juntos. Não entendia o que ela sentia, nunca parou ao menos para pensar que fosse possível se sentir daquela forma.
Levantou-se e caminhou até ela. Passou a mão em seu rosto, acariciando sua orelha. Ela piscou os olhos e levantou assustada.
— Perdi a hora?
— Ainda não.
Ana Júlia o encarou e então se lembrou da conversa e franziu a testa em uma expressão chorosa.
— Eu te amo, Juju. Pensei muito sobre o que me disse... Não prometo que vou conseguir entender tão cedo como você se sente, talvez eu nunca entenda, mas eu te amo de qualquer forma. E se você está feliz ao meu lado, seja apaixonada ou não, eu estou feliz ao seu lado.
Ela se ergueu de um pulo e o abraçou. Encostou o rosto em seu pescoço e ficou pendurada ali por algum tempo. Sabia que era com Felipe que gostaria de passar o resto dos dias de sua vida.
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Ana Júlia
Short StoryAna Júlia e Felipe estão de casamento marcado, mas a noiva precisa desabafar e finalmente contar o que sente. Um conto inspirado pela música Mad at Disney de salem ilese e escrito para o desafio mensal do Sodalício das Pétalas