Clarice revirou os olhos, frustrada. Sabia que deveria ao menos fingir estar empolgada, afinal era o casamento de Maria Júlia, uma de suas melhores amigas do colégio. Honestamente, ela sequer sabia porque Maju a tinha convidado: não se viam desde a formatura no ensino médio, quase 6 anos atrás, e tinham seguido rumos completamente diferentes na vida. Maju tinha se formado em enfermagem e realizava o sonho de se casar com o amor da adolescência, Rafael. Já Clarice havia se formado em direito por pressão dos pais, mas fizera questão de se sabotar no exame da OAB desde a formatura na universidade e trabalhava como ilustradora digital numa pequena empresa, algo que ela realmente gostava e era muito boa, por sinal.
Era bem verdade que, na época da escola, ela e Maju eram inseparáveis, mas a vida adulta havia batido na porta de ambas com um força descomunal e, agora, Clarice apenas se sentia deslocada na festa. As pessoas dançavam, comiam, bebiam, conversavam, parabenizavam os noivos enquanto ela apenas parecia existir. Não que não estivesse feliz: sabia muito bem que Maju e Rafa eram apaixonados desde o 1° ano do Ensino Médio e desde então viviam seu conto de fadas e ela apreciava a felicidade dos amigos. Realmente lhes desejava toda a felicidade que pudesse existir no mundo, mas o que a irritava era aquela aura de contos de fadas.
Diferentemente da maioria das pessoas ali, aparentemente, Clarice parecia não conhecer o amor. Ela obviamente já havia tido sua cota de relacionamentos, todos desastrosos – para dizer o mínimo - algo que a fazia ser lida como pessimista e amarga. Mas depois de várias traições, relacionamentos desgastados e a idiota crença de que “se não deu certo, é porque você não encontrou o homem certo” ou “Ah, você desiste muito fácil: uma mulher de verdade conserta o homem”, ela simplesmente sentia-se incapaz de acreditar naquele conto de fadas estilo Disney que as pessoas insistiam em lhe vender.
- Clarice? É mesmo você? – uma voz masculina a chamou. A mulher virou-se e viu outro amigo da época da escola parado segurando uma taça de champanhe. Thales estava realmente muito bonito em seu terno preto com gravata púrpura, a barba por fazer conferindo um charme a mais ao rapaz de traços coreanos.
- E aí, Thales. Se divertindo?
- Eu com certeza estou, mas você eu acho que nem tanto.
- É só cansaço. A companhia é um tanto exigente, sabe?
- Nunca duvidei que fosse, mas você não me engana. Estudamos por muito tempo juntos e eu sei bem que você está com a mesma cara de quando via o pessoal falando sobre relacionamentos perfeitos.
- Eu não estou com cara nenhuma e você sabe muito bem que isso de relacionamentos perfeitos não existem. Existem bons relacionamentos, relacionamentos que funcionam, mas perfeito nenhum é.
- Sei, sei...
- Que foi, vai me julgar também?
- Nem de longe. Só acho que é meio indelicado você ficar com essa cara bem no meio da festa deles.
- Eu sei, eu sei. Eu realmente tentei ficar ok, mas depois de todos aqueles discursos melosos, eu simplesmente não aguentei. Qual o problema de admitir que relacionamentos são complicados e difíceis?
- Não acho que seja efetivamente um problema, é só que é meio...triste fazer isso num casamento, não acha?
Clarice olhou o amigo de adolescência nos olhos, desconcertada. Sabia que Thales tinha razão e que ela estava, de fato, sendo no mínimo deselegante em ficar emburrada como uma criança. Mais uma vez ela revirou os olhos e tomou outro gole da bebida que um garçom havia servido.
- O que eu sei é que...
- Suas experiências anteriores foram traumatizantes e você está projetando isso agora porque ouviu pessoas contando suas próprias experiências sob uma ótica completamente envolta por um clima de festividades que as fazem esquecer dos elementos negativos inerentes a todo relacionamento.
- Você poderia fazer o favor de não me analisar fora do seu consultório, Dr.? Isso é realmente antiprofissional da sua parte.
- Eu sei, eu sei. Desculpe por isso, mas...sabe que eu tô certo, né?
- Em partes.
- Então o que é que estou perdendo? – Ele sentou-se de frente para ela. Clarice bufou, sabendo que ele realmente não ia desistir daquela conversa. Thales conseguia ser realmente insistente quando desejava. Ela então colocou-se também de frente, fazendo o vestido azul-marinho balançar ligeiramente com o movimento.
- O que você está perdendo é o fato de que, sim, eu realmente tive minha cota de relacionamentos tenebrosos e que eu realmente talvez não saiba como funciona o amor, mas eu sei que ficar se fiando em crendices de quando éramos crianças sobre príncipes encantados, amores à primeira vista, felizes para sempre e que o amor é capaz de superar tudo é completamente irracional e pode destruir um relacionamento tão rápido quanto, sei lá, uma traição.
- Ok, você realmente tem um bom ponto.
- É isso. Eu não desejo nada de ruim para a Maju e o Rafa, mas...eu também não quero que eles percam a noção de que relacionamentos são complexos e vão exigir muita coisa e que o “felizes para sempre” não significa uma vida perfeita.
- Bem, considerando que eles já tem mais de 23 anos e estão juntos desde os 15, eu acredito que eles tenham noção disso.
- Será? Ela ainda às vezes age como se fosse uma princesa presa na torre.
- Bem, Maju sempre teve uma visão muito...adocicada da realidade, isso é fato. Mas eu não acho que ela esteja completamente alheia ao que é um relacionamento de verdade.
- Eu realmente espero que não, porque vou te contar: é bem fácil cair nessas mentiras às vezes.
- Eu sei, e como sei disso...
- É, eu lembro de você e da Isabel.
- Nem estava exatamente me referindo a isso.
- Então a que estava se referindo?
- Ao fato de que, em certos momentos, é de fato fácil cair no velho conto da carochinha e acreditar na ideia de que o amor pode tudo e que, tendo-o, o resto vem fácil e todas as barreiras podem ser superadas. Mas, ao mesmo tempo, não vejo problema em ter esperança de ter um relacionamento que seja assim como o deles: tão encantador que quase parece ter saído de um conto de fadas. O grande ponto é... saber equilibrar as coisas, eu acho.
- Bem, se quer saber, eu ainda acho que essa história de almas gêmeas e tudo mais não passa de papo furado pra conseguir sexo fácil e...
- E você está projetando outra vez.
- E isso me torna mentirosa?
- Não mentirosa, mas bloqueia um bocado sua visão. Você tem maturidade o suficiente pra entender que vivemos numa sociedade que se construiu a base de várias mentiras que contamos para ter poder ou nos fazer sentir bem, então use isso a seu favor.
- Como assim?
- Pare de jogar suas frustrações em quem não tem nada a ver e tente usar o conhecimento que adquiriu com anos de experiências ruins de modo a conseguir uma experiência boa ou, ao menos, neutra, porque namorando homens você realmente vai ter dificuldades com isso! – Ele disse rindo, fazendo-a rir também.
- Logo você dizendo isso?
- Que foi? Eu já tive minha cota de desgraças também e te garanto que quase todas foram por causa de homens. Se eu pudesse, seria hétero, mas eu sou o bi mais fofo que existe e esse é o preço que preciso pagar por toda a minha fofura.
- Você é um idiota, isso sim.
- Uma coisa não anula a outra e, agora que você está menos emburrada, poderia dançar comigo? – Ele disse, galante. Clarice revirou os olhos, mais uma vez: Thales e sua mania de sempre querer fazê-la demonstrar seu lado mais suave. Porém, daquela vez, quando ele lhe estendeu a mão, ela aceitou. Afinal, que mal poderia ter em uma inocente dança com um amigo de infância no casamento de outros dois amigos?
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As mentiras que contamos
Short StoryOne-shot inspirada na música "Mad at Disney", Salem Ilese. Conto escrito para o desafio de Agosto da página Sodalício das Pétalas.