E então, no sítio: no cemitério da família

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O pequeno cemitério ficava no coração do sítio, quase no sopé do morro atrás do qual o sol se punha. Desde que chegara, havia duas semanas, Crica já fizera várias vezes o caminho até ali e, ultimamente, era onde terminava seus passeios de horas e horas, todos os dias, já com a tarde caindo e o sol mergulhando no morro.

Desde que deixara para trás a cidade, os pais, e tudo o mais, e viera se refugiar no sítio, sempre, depois do almoço, a garota saía para seus passeios solitários. Da varanda da casa, a avó, dona Glaura, observava Crica se afastar... e sorria. Sempre sorria. Era como se adivinhasse - apesar de Crica não fazer nenhum comentário sobre o que fizera durante a tarde - que a neta acabaria, sim, chegando ao pequeno cemitério.

No começo, os passeios de Crica não tinham rumo certo. Ela apenas vagava, até se sentir exausta, e depois retornava. Foi então, na terceira ou quarta tarde, que se lembrou do pequeno cemitério aonde sua avó a costumava levar, quando ainda era muito pequena. E era lá que contava histórias à menina: de príncipes e princesas, de grandes amores.

Da primeira vez, então, em que tomou a direção do cemitério, foi quase sem pensar. Em nenhum instante, mesmo depois de tanto tempo, hesitou sobre que trilhas seguir para até lá. Atravessou um bosque arejado, lembrou-se de árvores e esconderijos, e adiante foi dar na ponte de madeira tantas vezes em seus sonhos, nos últimos anos. Curioso é que só se deu conta disso -só se recordou dos sonhos com o riacho- no momento em que se deteve sobre a ponte, como fazia antigamente, e olhou para a água terrosa que corria por debaixo dela. Para sua enorme surpresa, foi tomada pela mesma sensação que tinha quando criança, de que, submerso na correnteza, lá no fundo, alguém invisível a espiava. Não era algo que lhe fizesse medo. Talvez, um arrepio, e um sentimento estranho, de estar entrando numa parte do mundo onde coisas poderiam acontecer. Coisas- sensações- das quais ela não falaria com ninguém, ou melhor (lembrava-se, agora, e cada vez mais), somente falava sobre isso com a avó, sentadas as duas entre as lápides de pedra do pequeno cemitério. Dona Glaura escutava a neta... e sorria. 

A garota percebeu que o bosque e a ponte haviam se tornado menores. Pelo menos, eram menores agora do que a lembrança, de menina pequena, que guardava deles. Também  o rio parecia menor, menos profundo; a correnteza, menos lépida. mas era o mesmo caminho - e, quando o reencontrou, deu-se conta também de que era a primeira vez que o fazia sozinha.

Depois da ponte, a trilha continuava mais um pouco e de repente terminava num jardim bem cuidado: as lápides se erguiam dos canteiros. Era o cemitério da família. Por isso, em muitas das lápides, estava inscrito o nome Martiniano. A mais antiga tinha datas de nascimento e morte do início do século XIX - 1809-1825. Era uma moça que morrera aos dezesseis anos - "Minha idade", pensou Crica ao rever a lápide. Era uma lápide solitária- havia outras casadas:um home, uma mulher.

Então era para aquele cemitério que Crica dera de vir, todo cair de tarde. Era ali que lembrava as histórias que sua avó lhe contava, quando ela era bem pequena- pequena o bastante para brincar de se esconder atrás das lápides, enquanto sua avó era sempre aquela que procurava, ou para de despedir de uma ou outra de "suas tias", chamando-a pelo nome gravado na pedra, quando ia embora. Era para lá que ia, agora, para pensar e repensar na vida, no amor, em sua tristeza e, muitas vezes para chorar sozinha.

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⏰ Última atualização: Jul 10, 2015 ⏰

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