Uma chuva torrencial despencava do céu escuro como breu. Molhando a figura encapuzada que corria pela estrada enlameada no meio da noite. Talvez fosse apenas seus instintos aguçados trabalhando mais rápido do que o seu corpo e sua mente poderiam acompanhar, mas ele sabia que havia alguém o seguindo.
You Huo há tempos fugia por entre as sombras da noite, tentando, a todo custo, se esconder daquela pessoa que um dia fizera seu coração morto voltar a bater. Ele não sabia dizer se era aquela pessoa que estava burlando regras mais uma vez e seguindo-o, ou se era apenas as memórias inebriantes percorrendo em seu encalço por aqueles becos escuros da cidade costeira. Talvez fossem as duas coisas, ele não saberia dizer, a sensação dolorosa daquelas lembranças pressionando-lhe o cérebro como se tivesse a lâmina fina de uma espada apontada para sua testa.
Apenas uma palavra poderia descrever os anos que se seguiram após o seu exílio de um dos clãs mais nobres e antigos dos vampiros, os Kyaneos.
Para sua surpresa, ele estava ficando cansado. Mas não era um cansaço que subia pelas suas pernas compridas que o guiavam inconscientemente por entre as ruas e becos daquela cidade costeira, era um cansaço que desabrochava do seu coração paralizado.
Franzindo o cenho e fazendo o que aquela outra pessoa chamava de 'cara feia', acelerou ainda mais, obstinado em chegar logo no farol em que seu tio e seu primo abobalhado viviam durante anos.
O cabelo preto como nanquim estava grudado na sua testa, as roupas encharcadas já pareciam fazer parte de seu corpo, mas nem mesmo esse desconforto poderia pará-lo. Quando estava chegando perto do cais, You Huo desacelerou juntamente dos respingos da chuva e olhou para trás. Forçando seus olhos que outrora foram cegos, ele pode enxergar um vulto que se escondia nas sombras que as luzes alaranjadas dos postes produziam.
Quando o céu deu sinal de que não havia mais como a tempestade cobrir a cidade, You Huo foi até um pequeno barco que estava amarrado num dos mastros de madeira do cais. Entrando no pequeno barco enferrujado, ele habilmente desamarrou aquelas cordas e, dando um último olhar discreto para trás, percebeu que o vulto havia sumido e, juntamente, as centelhas de lembranças que restavam foram carregadas pela brisa com cheiro de maresia.
Olhando para o céu, You Huo deixou a luz pálida da lua que saiu de seu esconderijo banhar sua pele de porcelana. O vento frio soprou e, com a luz lunar que refletia na água, o vulto que anteriormente seguia You Huo teve o vislumbre de um brilho em suas orelhas que tremeluziu como cristais ao vento.
Um impulso fantasmagórico fez o pequeno barco enferrujado começar a deslizar pelas águas escuras, sendo guiado pela luz das estrelas que começavam a aparecer conforme as nuvens sumiam do céu. Um véu de cristais que, naquele momento, traçava as linhas da história que estava para se repetir, dessa vez com a possibilidade de as constelações formarem um final feliz.
Sob este céu e diante deste mar, os antigos amantes que foram capazes de devolver a pulsação para o coração um do outro puderam contemplar a beleza daquilo que lhes faltava: vida.▪︎▪︎▪︎
O farol erguia-se sombriamente diante de seu corpo encharcado. Aquela torre de pedra estava cravada naquele rochedo há tanto tempo que You Huo suspeitava que até mesmo as gerações mais antigas do clã Kyaneos puderam contemplar dali de cima o mar azul se transformar na coloração do vinho.
Tempos sombrios foram aqueles, em que os vampiros tiveram que enfrentar os maiores predadores do mundo: os seres humanos. Criaturas perversas que não se importavam em cravar as estacas de madeiras nos corações já sem batimentos dos vampiros. Aqueles que achavam que tornar-se vampiro ou nascer como um era uma dádiva estavam errados.
Com esses pensamentos perpetuando a sua mente, You Huo empurrou a portinhola de madeira que dava entrada no farol, a madeira já gasta pelo vento e pela maresia raspou em seus dedos, sem que percebesse, um pequeno corte se abriu.
You Huo subiu os degraus da escada em espiral que levava até o alto da torre, sua presença solitária parecia assustadora em meio a penumbra. Enquanto subia, ele deixava a ponta dos dedos deslizarem pelas pedras frias, somente pelo toque sentindo os anos impregnados naquelas pedras cinzas.
Parando diante da pequena porta que dava para a residência de seu tio e seu primo que, agora, estava mais apertada por conta da inserção de mais uma pessoa.
O som do chiado do pequeno e velho rádio podia ser ouvido. You Huo deu um passo adiante e retirou suas botas enlameadas e as deixou na soleira da porta.
“Primo, chegou meio tarde”, a voz de Yu Wen veio direto da cozinha, possivelmente tentando fazer outra bomba culinária, na esperança de seu pai finalmente reconhecer a independência do filho.
“O Tio Yu está lá em cima?”
“Sim, desde o início da tarde, no momento em que percebeu as nuvens escuras chegando aqui perto e a mudança do vento, correu pelas escadas e ligou o farol.”
“Hm”, desde que You Huo voltou para a cidade costeira, tentou se acostumar com a vida no farol, mas sempre acabava indo para o outro lado da cidade, se isolar em um canto da Baía de Liaodong, contemplando a imensidão azul que se abria diante dos seus olhos, com a crescente sensação de perda assolando seu coração. Isso era algo que sempre o irritava, lembrar e ao mesmo tempo não lembrar de algo ou alguém.
“Primo?”, com um sobressalto, You Huo direcionou os olhos frios para o tagarela Yu Wen, que com um olhar inocente de indagação e preocupação, o encarava.
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Kyaneos: The First Heartbeat
Fanfiction"O mar tem dessas coisas, devolve tudo depois de um tempo, especialmente as lembranças." You Huo sabe o que ele é, mas não sabe dizer quem exatamente ele é. Passando seus dias languidamente no farol da Baía de Liaodong, com seu Tio e seu primo...