A Cidade Sagrada fervilhava naquele dia. Um milhão de anos terrestres após o nascimento da última criança divina, um novo deus estava prestes à vir a esse mundo. Ceuci, filha do poderoso Tupã e deusa das lavouras estava com as pernas abertas sobre um bloco de mármore branco e maciço, rangendo os dentes e apertando a barra de seu vestido translúcido. O suor escorria de seu corpo em profusão e um filete de sangue escuro jorrava de sua vagina, tingindo tanto o mármore quanto as mãos da parteira de vermelho. que olha aflita para as partes íntimas da jovem.
Todos os deuses da Cidade Sagrada estavam presentes. Tupã controlava o nascimento dos seres divinos e só permitia que um viesse ao mundo após a vida de outro ter fim. Mas aquela criança ia contra tudo que ele pregava. Além do mais, era impossível um deus ser gerado da mesma forma que um humano. Todos se perguntavam como aquilo era possível e temiam a resposta.
O feto relutava em sair, o que não era um bom sinal. A parteira dos deuses enxugou o suor do rosto e lançou um olhar para Tupã. Cada novo deus trazia consigo as diretrizes que seriam estabelecidas no novo ciclo de um milhão de anos. A resistência daquele pequeno em nascer só podia significar uma coisa: depois daquele garoto, a Cidade Sagrada jamais seria a mesma.
Ceuci soltou um grito agudo que reverberou por todo o Palácio de Cristal, fazendo retinir as janelas e portas de vidro. A jovem respirou e expirou depressa, contraindo e distendendo a barriga a cada movimento. Se Jaci ao menos estivesse ao meu lado nesse momento, ela pensou, tudo seria diferente. Jaci era a deusa da noite, mas também da concepção, responsável por zelar pelo nascimento dos novos deuses. Mas ela não está aqui. Tudo minha culpa. A parteira levanta a cabeça acima dos joelhos da moça e exclama:
— Só mais um pouco, minha querida. Estou vendo ele.
A jovem não respondeu. Cerrou os lábios e fez força. Como deusa da agricultura deveria saber a dor do parto e do desabrochar de uma nova vida, mas não sabe. Jamais fora violada e, mesmo grávida, insistia na sua castidade. Tupã, é claro, não acreditava na história e sempre suspeitou que Coaraci, deus do sol e seu filho, fosse o verdadeiro pai daquela criança, ao invés do fruto do bem e do mal.
— Está saindo, está saindo.
Um choro irrompeu entre as pernas de Ceuci e a jovem desmaiou. A parteira enrolou a criança numa toalha branca e apresentou o mais novo deus para seus pares que arregalaram os olhos. Os mais exaltados viraram o rosto, mesmo com o perigo de sofrerem represálias do senhor da Cidade Sagrada. Comemorar o nascimento de um ser divino fazia parte das leis da Cidade Sagrada, mas diante das condições, o único sentimento que o filho de Ceuci despertava era a desconfiança.
A parteira entregou a criança a uma semideusa designada como ama de leite e a multidão começou a se dispersar, cochichando com o cenho franzido. Apenas Tupã e um deus careca, de pele flácida e enrugada permaneceram ali.
— Onde está Jaci, Tupã?
— Minha filha tinha assuntos urgentes a resolver.
— Mais urgente que o nascimento de seu sobrinho? — O velho arqueou as sobrancelhas. — Está perdendo o controle de sua família, meu irmão. Qualquer parto é arriscado sem a benção da deusa da reprodução.
O deus do trovão ficou em silêncio, com o cenho franzido. Seus olhos faiscaram.
— Como foi que isso aconteceu, Tupã? O que pretende fazer?
— Como assim? — As pálpebras do deus do trovão se estreitaram, deixando escapar centelhas faiscantes pelas laterais.
— Você também viu, Tupã. Não pode ignorar os sinais.
— Diga logo o que tem para dizer, Anhangá!
O idoso pôs uma das mãos nas costas recurvadas e com a outra apontou para a saída.
— Aquela criança será a nossa desgraça.
Tupã cerrou os punhos e um enorme raio prateado trovejou no céu sem nuvens da Cidade Sagrada, refletido pelas paredes de vidro translúcido do Palácio de Cristal.
— Tome muito cuidado ao falar do meu neto outra vez, velho.
Anhangá arrastou-se até a saída em silêncio. Colocou a mão no batente transparente, girou o pescoço e encarou seu irmão mais novo.
— Seu neto trará a ruína para nosso povo, Tupã. Espero que tome a decisão correta quando a hora chegar.
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Sombras & Serpentes
FantasyNo início era Nhamandú, a Centelha Primordial. Da escuridão do universo ele criou Anhangá, o deus das sombras e de sua mente, Nhamandú deu origem a Tupã, senhor do trovão. Após uma intensa batalha travada entre os dois irmãos pelo controle da Cidade...