CAPÍTULO VIII

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Minhas esperanças em te encontrar ficam cada vez menores. Estou começando a suspeitar que você seja um mero fruto da minha imaginação, Juliet. Espero que não seja. E espero que você volte.”
Carta da condessa Janet Treadway à desconhecida Juliet Templeton, Maio de 1815.
Endereço de destino jamais encontrado.

    AS TARDES ERAM AGRADÁVEIS AGORA. Fazia tempo que não eram. Janet não gostava de morar na casa da mãe, mas ao menos tinha companhia. Desde que havia se casado, sua vida tinha se tornado um longo e ininterrupto período de solidão. Até Eleanor aparecer. A jovem conseguira um feito que por muito tempo Janet pensara que era impossível: fazê-la feliz. Não plenamente feliz. A condessa ainda era consumida pela dor da perda todas as noites quando acendia uma vela ao bebê que nunca tivera. Ainda se sentia como uma criança assustada quando se lembrava do olhar do seu pai naquela noite. Mas ela nunca se lembrava dessas coisas quando estava com Eleanor.
    A inocência da garota chegava a ser engraçada. Janet nunca fora assim. Quer dizer, fora, muitos anos atrás quando era uma criança e o que acontecia em um casamento não importava para ela. Mas conforme o tempo passava, várias coisas incitavam sua curiosidade, a obrigando a investigar por conta própria. Eleanor… Eleanor não era assim. Janet pensava que ela ao menos saberia que tipo de ações seriam consideradas flertes, mas ficou claro que não quando a jovem senhorita Whitlock perguntou à condessa porque ela sorria toda vez que olhava para os lábios dela.. Janet não disse nada além de “um dia você entenderá”.
    Janet a queria. Céus, como a queria. Cada vez que Eleanor passava pela sua porta, com seus lindos olhos castanhos e uma cesta de biscoitos que trouxera da sua casa, a condessa podia sentir suas pernas fraquejarem. Não por causa do velho ferimento, mas por causa da beleza daquela mulher. Era de tirar o fôlego. E Janet queria acabar logo com aquilo. Queria arrancar cada camada de roupa que cobria sua pele e beijá-la até que Eleanor ficasse sem condições de falar. Mas tinha plena consciência de que isso nunca sairia da sua imaginação.
    A pouca experiência da sua aliada estava trabalhando contra ela. Janet estava se esforçando muito para ser clara quanto ao seu interesse. Tentava elogiar Eleanor cada vez que surgia a oportunidade, tentando ser óbvia mas não tanto assim. Já elogiara seu cabelo, seus vestidos, e até mesmo suas mãos, mas nunca obtera nada em resposta. Bem, nada além de sorrisos, bochechas rosadas e quebra de contato visual. E pela primeira vez em vinte e quatro anos de existência, ela não sabia como interpretar isso. Não sabia se era um jeito estranho de rejeitá-la ou se Eleanor simplesmente não sabia como corresponder. Ou, quem sabe, um pouco dos dois.
    Era corrosivo. Janet não conseguia parar de pensar nisso. Estava muito atraída, mas não sabia o que fazer. Tinha medo de Eleanor a odiar por aquilo, assim como toda a sociedade odiava pessoas como ela, e acabar espalhando para todo mundo. Isso levaria seus planos de criar um orfanato por água abaixo. Mas o que mais assustava a condessa era a ideia de Eleanor se afastar quando entendesse a situação. Quando percebesse que Janet queria mais que amizade. A condessa preferia viver com a tentação constante do que voltar a passar os dias sozinha, à mercê de seus pensamentos solitários. Agora que sabia que podia fugir daquela sensação, não voltaria nunca a passar por aquilo. Nunca.
    No momento, ela estava se odiando por estar mais uma vez pensando em como beijar Eleanor enquanto a garota falava inocentemente sobre as flores na estufa da casa Treadway. A condessa só conseguiu prestar atenção na maneira como seus lábios se mexiam conforme ela falava. A senhorita Whitlock estava mais bonita que o normal na opinião de Janet. Ela não sabia exatamente o motivo, só sabia que ela parecia mais confortável em estar ali, ao lado dela. Mesmo assim, Janet não se permitiu criar esperanças. Não sem ter certeza do que estava acontecendo.
    — Janet? Está me ouvindo?
    A condessa piscou. Não, estou ocupada demais admirando seus lábios, foi a resposta que surgiu no seu cérebro. As palavras que disse foram bem diferentes, no entanto.
    — Não. Me perdoe. Estou fazendo contas, tentando calcular quanto vou acabar gastando com o baile depois do aumento do número de convidados.
    Eleanor a encarou por um tempo e depois assentiu com a cabeça, voltando a olhar para os arbustos floridos da estufa. Depois de alguns segundos, suspirou.
    — Às vezes me esqueço que só estou aqui para te ajudar com a festa. Pedi para ver as flores e acho que já perdemos uma hora. Me desculpe.
    Janet teve que disfarçar a reação que teve a essa fala. Não sabia como interpretar, mas parte dela - aquela parte que sempre achava um jeito de vir à tona por mais que Janet a empurrase para as profundezas de seu ser - acreditava que era um indicativo que Eleanor queria estar ali. Não ia por causa de um favor que Janet pediu à sua mãe. Ia porque queria. A condessa não conseguiu conter um sorriso.
    — Você veio aqui pela primeira vez por causa do baile. Agora vem porque somos amigas. Certo?
    Mais uma vez, o coração da misteriosa e inabalável Lady Treadway deu um salto. Por causa do sorriso de Eleanor. Um sorriso quase aliviado.
    — É… É bom ouvir isso. — Eleanor deu um passo à frente. Janet ficou incerta do motivo, mas não recuou. Por mais que seu cérebro dissesse que era a coisa correta, seu corpo não a obedecia. Queria se aproximar cada vez mais, até o momento em que inevitavelmente, seus corpos se tocassem. Queria tomá-la em seus braços, beijá-la até que perdessem o fôlego. Não podia, mas céus, como queria. Se estivesse morrendo e Deus lhe concedesse um último desejo, ela sem dúvidas o usaria para beijar Eleanor. Era egoísta e estúpido, mas era a coisa que mais ansiava no momento.
    — Janet, eu… — Eleanor desviou o olhar. Queria dizer alguma coisa, mas alguma coisa a impedia. — Eu queria… queria te pedir um favor.
    A condessa levaria esse segredo ao túmulo, mas seu coração deu um salto. A esperança estava ali, martelando em seu peito, por mais que Janet tentasse ignorar.
    — Peça. Eu verei o que posso fazer.
    Eleanor a encarou. Suas bochechas estavam levemente rosadas, mas seus olhos estavam fixos nos olhos de Lady Treadway. Não que Janet tivesse notado. Estava olhando para os lábios dela, que Eleanor estava mordiscando sem nem notar. Estava nervosa, e a condessa adorava.
    — Quando eu vim aqui pela primeira vez… você estava lendo um livro…
    — Mary. Por Mary Wollstonecraft. Eu me lembro.
    Eleanor assentiu, corando com a mera menção do livro que o conde nem imaginava que existia na biblioteca de sua residência oficial.
    — Exato. Eu… eu sei que não deveria, mas… minha mãe não me deixa ter esse livro. Eu gostaria de saber se… se a senhora tem alguma ideia de qual o motivo disso.
    Janet sorriu. Ela sabia. Claro que sabia. O livro não tinha nada demais, em sua concepção. A personagem se apaixonava por uma mulher, mas não era recíproco. Não passou de uma amizade. Mas algumas mães achavam aquilo um absurdo, e proibiam que as filhas sequer pensassem na história. O que, obviamente, só as deixava ainda mais curiosas.
    — Sei sim, Eleanor. Mas não vou te dizer. Acho que você deve descobrir por si só.
    Os olhos da garota se arregalaram. Janet estava oferecendo uma passagem para o proibido. Depois do choque os olhos da garota brilharam. Ela queria aquilo. Queria saber, ler, entender e interpretar a situação por conta própria.
    — Minha mãe me mataria se eu levasse o livro pra casa. — Eleanor disse, ainda sorrindo em choque. Queria que Janet achasse um jeito de ela conseguir colocar as mãos naquela obra.
    — Eu sei disso, querida. Por isso que você vai ler aqui.
    Janet saiu andando, na intenção de ir até a biblioteca. Parou depois de alguns passos, percebendo que a jovem Whitlock não estava a seguindo. Olhou para trás e a encontrou parada, encarando a condessa.
    — Mas e o baile?
    A condessa sorriu, voltando para perto dela.
    — O baile já está quase pronto. Eu só preciso fazer algumas contas para enviar a ideia ao conde.
    — Então… eu posso continuar vindo aqui? Mesmo quando o baile já estiver planejado?
    — Pode vir sempre que quiser, Eleanor. — Os olhos castanhos de Eleanor encararam o rosto de Janet. Havia brilho neles. Felicidade quase. Estava ficando cada vez mais difícil para ela ignorar a esperança de que ela talvez tivesse uma chance. — Quer ir buscar o livro?
    A garota assentiu, sorrindo fracamente, e as duas caminharam pelo jardim, em um silêncio confortável. Janet entregou o livro à Eleanor assim que entrou. Ela ficou encarando o livro em suas mãos, como se tivesse acabado de receber uma resposta para todas as perguntas que um dia fez. A condessa ficou olhando para ela, numa distância menor do que seria considerada apropriada, mas não estava preocupada. Queria ler as expressões da garota mais de perto. Eleanor olhou para Lady Treadway, e Janet viu em seus olhos algo que fez ela prender a respiração. Era paixão.
     — Obrigada, Janet. — Eleanor diminuiu ainda mais a distância entre elas. — Será que você pode me dizer o que esperar da história?
    Janet corou. Estava em choque. As células do seu cérebro não conseguiam entender como a garota que até ontem evitava olhares estava dando passos em sua direção. Passos  certeiros. Determinados. Passos de quem quer alguma coisa. Era… estranho. E ao mesmo tempo, absurdamente interessante. Fazia o interesse da condessa por Eleanor triplicar, e ela quase podia sentir seu coração dando pulos no seu peito.
    Fez um movimento ousado. Colocou a mão na cintura da garota e a trouxe para perto. Eleanor não recuou, mas também parecia sem saber o que fazer. Foi aí que Janet notou que essa confiança era fachada. Não conseguiu segurar um sorriso. Eleanor provavelmente tinha passado a noite em claro, buscando por maneiras de dar o primeiro passo para um beijo. Lendo e procurando isso em livros de romance. Pelo menos ela tinha percebido o que aconteceu no baile em que trocaram as primeiras palavras. E entendido que aquilo que sentiu quando os seus rostos estavam tão próximos era paixão.
    — O que exatamente você quer saber?
    Janet já olhava para os lábios dela, arrepiando cada vez que a jovem o mordiscava de nervosismo. A pobre garota mal sabia que isso só a deixava ainda mais atraente.
    — Algo sobre… A protagonista e… — Perceber que ela já estava sem ar era incrível. Fazia tempo que Janet não tinha tanta evidência do que suas ações causavam sobre outras mulheres. E se lembrar da sensação era… maravilhoso. — E uma… uma amiga.
    — Bem… —  Janet levou apoiou a bengala na estante, e levou a mão agora livre até a bochecha de Eleanor. Olhando para seus lábios, ela a acariciou. — Não acontece muito entre elas além de uma amizade, mas… eu posso te mostrar o que Mary gostaria que tivesse acontecido. Se a senhorita quiser.
    Eleanor estava ofegante. Janet mal havia encostado nela, e a garota já estava ofegante.
    — Eu quero.
    Sua voz saiu rouca, sufocada pela respiração pesada, e pelo que Janet supunha, era o seu coração martelando no peito. A condessa sorriu com a aprovação, acariciou os lábios da jovem com o polegar e depois disse:
    — Pois bem.
    E a beijou. De maneira delicada no começo, com medo da reação de Eleanor, mesmo que tudo indicasse que elas estavam na mesma página. Depois de um tempo, o corpo da jovem pareceu relaxar. E Janet sentiu que era o momento de ir adiante. Puxou Eleanor ainda mais perto, abraçando sua cintura completamente. A jovem pareceu surpresa no começo, mas depois relaxou e pôs seus braços em volta de Janet. Uma de suas mãos até foi parar em seus cabelos, o que arrancou um sorriso surpreso da condessa. E antes que Janet pudesse se conter, sua língua já havia invadido a boca de Eleanor. E obteve uma resposta positiva antes mesmo que a condessa pudesse se arrepender. As mãos da senhorita Whitlock puxavam e apertavam os cabelos agora soltos da Lady, o que a fazia suspeitar que talvez esse não fosse o primeiro beijo dela. Janet estava quase levando as mãos aos botões do vestido de Eleanor quando decidiu parar. Era melhor ir com calma.
    A senhorita Whitlock pareceu decepcionada quando a condessa se afastou. Mas dois segundos depois, estava com os olhos arregalados. Janet engoliu em seco.
    — O… o que foi isso? — A pergunta não passava de um sussurro. A voz estava sussurrada, e ela parecia… arrependida.
    — Eu… — A condessa não sabia ao certo o que falar. Talvez fosse culpa dela. Talvez tivesse entendido os sinais errado. Não fazia isso há tanto tempo, e talvez estivesse sem prática. — Eu achei que fosse o que você queria…
    Eleanor levou olhou para ela. O arrependimento no olhar quebrou o coração de Janet em dois.
    — Eu preciso ir…
    E foi embora. Sem esperar por uma resposta, sem deixar que a condessa se explicasse… Deixando a mulher que a tinha nos braços alguns segundos antes sozinha e, surpreendentemente, amedrontada. Simplesmente foi. Obrigando Janet a encarar o fato de que estava começando a amá-la.

Pelo amor de uma CondessaOnde histórias criam vida. Descubra agora