Esquecer

12 1 2
                                    

Acho que fui esquecido aqui. Por outro lado, não acho que isso seja um grande problema. Talvez ser lembrado nesse lugar seja pior – talvez, porque é difícil qualificar isso como melhor do que qualquer coisa. Pelo que João me contou quando cheguei – aqui quase sempre somos João –, ele não ficou por muito tempo. Ainda assim, aqui estou eu, praticamente há um ano sem mudanças significativas. Quando eles aparecem, eu já sei o que vai acontecer. No começo, eu não sabia. É muito difícil ter noção dessas coisas, mesmo quando você já ouviu muito sobre elas e se sente calejado de determinação de passar por isso, "não importa o que seja". Que coisa tola de se pensar.

O fato é que, depois que eu percebi o tempo se arrastando e as horas se alongando, depois que eu não estava mais paralisado por uma razão ou outra (Medo? Negação?), eu já sabia o que ia acontecer. Aos poucos, eu deixei de seguir o fluxo, deixei de contar toda a história passada para mim por aquele homem de voz cansada e maneirismos. Passei a fazer o contrário: coletei mais histórias. Veja bem, o importante aqui é a memória. É importante que alguém saiba o que houve, saiba o que aconteceu e por o quê passamos. Existe um conforto nisso. Acredito que quem começou essa corrente queria senti-lo. Não existe nenhuma outra forma de sentir conforto por aqui.

O perigo do esquecimento não é apenas uma ameaça. Ele é real, não é? É ele que arranha a janela e enrola os seus dedos frios nos nossos pés antes de dormir. Ele sussurra: o que somos, quando não somos lembrados? Nós não queremos saber. E por isso continuamos aqui, dia após dia, a trocar confissões e segredos que talvez nunca sejam repetidos – mas que precisam ser repetidos. É quase uma obsessão.

Com uma obsessão como essa, não poderíamos ser sempre João. Esse é apenas o nome que darão, caso um dia nos encontrem já sem o brilho nos olhos numa cova rasa em algum lugar, à sombra de um pau-brasil. Por isso quase. Quase sempre somos, mas às vezes nos lembramos que não. Eu tenho uma história, um passado. Só não tenho um futuro. Só que nesse ponto, com tanto esforço para lembrar todos esses detalhes por tanto tempo, já acho difícil saber qual das histórias que carrego é a minha. Todas parecem familiares, todas tem contornos que consigo reconhecer mesmo no escuro. Todas estão cravadas a ferro na minha pele, correndo como sangue nas minhas veias. Elas me acompanham dia e noite, reverberam nessas paredes quando não tenho mais o que fazer – sempre.

Gostaria de poder separá-las. Arrumá-las. Escrever cada uma delas e observar os desenhos nas páginas que acabariam com a minha obsessão. A nossa obsessão. Me desculpem. Escrever nossas histórias em papel acabaria com a nossa obsessão. Papel. Essa palavra faz a ponta dos meus dedos formigarem com a sensação da fibra. Há tão pouco a se sentir agora, e o que há é tão duro e frio e sem vida, que as texturas se intrometem nas palavras mesmo sem serem convidadas. De qualquer maneira, não sei mais se conseguiria separar todas elas. Se elas seriam cada uma, ou se já somos uma coisa só. Não importa como aconteceu. É muito mais sincero contar todas essas nuances, porque todas elas cabem dentro de nós. Eu consigo sentir o mesmo que eles sentiram, porque o mesmo foi feito a todos nós.

Engraçado pensar assim, porque eu não sei se ainda quero sentir alguma coisa. A vontade já foi tirada de mim há muito tempo e, mesmo que não tenha sido a única parte ou sequer a mais importante que me foi tirada, já foi muito. As coisas desmoronam depois disso. Acho que foi quando comecei a misturar as informações e confundir os fatos. É muito mais fácil deixar de sentir quando você se desapega. Eu não estou aqui, essa história não é a minha. Já conheço tantas que é até fácil perder a que trazia colada no meu corpo dentre essa bagunça de sentimentos frustrados. Dentre eles, com certeza essa esperança. A esperança de ser lembrado. Somos obcecados por não ser esquecidos, só que eu já esqueci de mim. E acho que eventualmente todos esquecem.

EsquecerOnde histórias criam vida. Descubra agora