Eu provavelmente tinha oito anos quando comecei a dar os primeiros sinais do que as pessoas chamam de "afeminado". Não era algo que eu compreendia ou me importava, mas aparentemente meus pais e outros adultos ao meu redor se importavam. Na realidade, aos poucos, eu percebi que algumas pessoas da escola também se importavam.
Minha mãe tem uma irmã que não costumava ter tanto contato com a família dela em um geral. No entanto, houve um churrasco de domingo, aniversário do vovô, em que ela decidiu aparecer. Pelo que fiquei sabendo na época, ela só aparecia quando era aniversário do pai ou da mãe dela. De qualquer forma, o fato é que depois daquele dia ela passou a vir em casa mais vezes.
Dona Luíza, vulgo, a mulher responsável por mim, não pareceu ficar preocupada com isso. Ela ama muito a irmã e ficou feliz com a aproximação. E, por isso, aos poucos eu ganhei uma tia e grande amiga que eu passei a amar muito. Sempre que a tia Aurora vinha, ela sentava no chão e brincava comigo. Além disso, ela me escutava e me dava chocolates escondido. Dessa maneira, meus pais aos poucos perceberam que poderiam confiar nela para me deixar passar um sábado ou domingo, às vezes o fim de semana inteiro.
Eu tinha onze anos e estava na casa dela quando conversei com ela pela primeira vez sobre pessoas e namoros.
— Tia. — chamei ela tentando escapar de continuar a lição de casa que só ela parecia ter paciência para me ajudar e me explicar, porque meus pais perdiam a paciência em menos de cinco minutos.
— Diga.
— Eu vi dois meninos se beijando na escola essa semana.
— Você viu? — ela perguntou arqueando uma sobrancelha. — E daí?
— E daí que foi estranho. Eram dois meninos. Minha mãe diz que isso é errado.
— Hum... — tia Aurora pensou um pouco a respeito e bebeu um gole do café puro na sua frente. — Promete guardar segredo? — ela perguntou e eu concordei com a cabeça bem rápido, tão rápido que doeu. Ela riu da careta que eu fiz por causa da dor. — Meninos podem beijar meninas, assim como meninas podem beijar meninas, e meninos podem beijar meninos. Mas algumas pessoas não concordam com isso. Então, isso que eu estou te contando é um segredo.
— As pessoas não concordam?
— É. Existem pessoas que acham que meninos beijarem meninos ou meninas beijarem meninas é errado. Eu discordo.
— Por que seria errado?
— Sinceramente? — ela perguntou retoricamente. — Eu não sei. — ela mentiu, mas na época eu não percebi. — Mas não se preocupe com isso, Miguel. O que importa, é que independente de qualquer coisa, eu estarei aqui para você. Tudo bem?
Na hora, eu não entendi o peso de suas palavras, mas concordei com elas.
[...]
Quando eu estava no primeiro ano do ensino médio, perto de completar quinze anos, eu beijei pela primeira vez. Para minha própria surpresa, era um garoto. Quero dizer, eu não imaginava minha orientação sexual, e quando a oportunidade surgiu e eu compreendi tudo, eu fiquei sem saber o que fazer. Afinal, desde sempre eu ouvi a homossexualidade sendo desprezada dentro da minha própria família. Então, o que eu deveria saber com uma informação que eu não podia contar aos meus pais? Para toda a minha família?— Você tá muito inquieto, Miguel. Aconteceu alguma coisa? Você quer me contar algo? — olhei para ela preocupado, eu não sabia se queria contar para ela. Quer dizer, eu podia confiar nela, não é? No fim, ela ficou visivelmente preocupada comigo e me arrastou para a cozinha. — Se você não quiser me contar, está tudo bem. — ela me disse olhando nos olhos. Eu já tinha passado a altura dela, então às vezes era engraçado olhar para alguém que era tão alta antigamente. — Só quero que saiba que pode confiar em mim e me contar qualquer coisa. — decidi ficar quieto, não sabia o que responder. — Você me entendeu? — ela perguntou enquanto bagunçava meu cabelo.
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Confiança
Short StoryMilhares de seres humanos nascem no mundo diariamente, e nenhum deles vêm com um manual de instruções, mas às vezes tudo que eles precisam é de amor, paciência e alguém para confiar.