𝑽𝒂𝒍𝒔𝒆 𝒅𝒆 𝑳'𝒆́𝒕𝒆𝒓𝒏𝒊𝒕𝒆́

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Adentrei o tremendo salão de festas, como nunca, vazio. Era tão estranho presenciá-lo em sua forma monótona, algo previsto se pensar que durante minha vida inteira presenciei esse local cheio em diversos eventos.

O ambiente ornamentado trazia-me certa nostalgia, lembranças vívidas do passado já distante. Em curtos andares até o centro, admiro as enormes pilastras e a requentada decoração do ambiente fino e nobre. Fiz um pequeno rodopio vagaroso, imitando a dança daquela noite. Lembro-me com clareza dos minuciosos detalhes, dos mais relevantes até os insignificantes. A inesquecível e perpétua noite daquele que deveria ser mais um habitual dia de inverno, um dia normal como os outros tantos...

Você com um respeitoso cortejo, estendeu sua mão me convidando educadamente para lhe acompanhar em uma humilde dança. Não entendia do porquê de dentre tantas damas chamativas, eu havia sido escolhida. Meu desinteresse evidente à proposta fez com que recebesse olhares repreendendores de minha irmã, que não me via nada mais, nada menos, do que uma jovem insolente que foge desesperadamente do usual. Nitidamente eu estava sendo rude com o rapaz a minha frente, independente de saber seu status dentre todos aqueles aristocratas mesquinhos. Entretanto era quase óbvio aos meus olhos que ele não se misturava aos demais, havia algo diferente, novo, que me instigou a saber mais. Os atos corteses foram apenas mais um dos requisitos que me convenceram a acompanhá-lo.

Cordialmente nos comprimentamos com uma sútil reverência, seguindo o os tradicionais costumes de bons modos e conduta, o esperado entre um cavalheiro e uma dama. Aguardávamos o início da melodia concentrados em nossas posições. Mal sabia eu que está memória ficaria gravada no mais profundo âmago de meu ser.

As delicadas teclas passaram a introduzir a sinfonia de forma crescente e suave, o curto solo do instrumento foi tempo suficiente para a aproximação corpórea moderada exigida na prática, gerando passos lentos tão graciosos quanto o soar do piano. Algo que antes parecia calmo, agora reunia todos os instrumentos após o chamando do sedutor soar do violino, de forma agitada e ritmada.

Como eu poderia me esquecer daquela sensação de puro êxtase? Suspirei fundo de forma demorada, sentindo meu corpo cada vez mais leve e tardio. Com passos que me conduziram ao som do adorável piano, as cordas estridentes do violino, o chamativo violão celo. Tais sonoridades na valsa compassada me traziam a manifestação de diversos sentimentos, tão distintos que me deixavam ainda mais imersa na consciência de minha própria fantasia tola. A alegria, a suavidade, a surpresa, a feição, o inesperado, que agora soam como pura solidão e melancolia por sua ausência nesse imenso salão... abandonado.

Como sentimentos tão distintos podiam se encaixar de forma tão majestosa em um campo harmônico? Esse talvez seja um dos maiores questionamentos dos grandes músicos e ouvintes, que experiementam de sensações jamais vívidas, porém, misteriosamente sentidas.

— Devo dizer, a senhorita dança elegantemente bem. — o jovem a minha frente sorriu de forma singela.

Talvez seja importante mencionar que foi a primeira vez que Alisson se dirigiu a mim diretamente. Por que seria importante? Não sei, apenas me lembro dessa informação.

— Valsa se trata do condutor, não sou digna de seu reconhecimento. — ele soltou uma risada sutil dos meus dizeres. Seus olhos pareciam penetrantes. — Há algo de errado?

— Senhorita Sarah, estamos a sós. Não há necessidade de conceder a mim uma resposta tão forjada, qual provavelmente foi conduzida a proferir por educação. — disse pacientemente, seu timbre era suave e aveludado. Sua voz transmitia uma misteriosa calmaria.

Aquilo foi tão repentino que mal pude evitar meu espanto. Jamais esperaria um pensamento desses vindo de alguém da classe dele, um nobre. Uma peculiar característica que o tornava encantador. Sequer consegui dizer alguma coisa após isso, mas certamente fiquei feliz com aquele simples diálogo. Parecia que finalmente pudia confiar em alguém, estranho pensar assim de um mero desconhecido. Decidi concentrar-me novamente na dança, na realidade passei a ser mais devota a meu condutor.

Uma perfeita história de amor surgia a cada movimento musical, naquele compasso três por quarto, deveras  estonteante. Era o que a melodia contava, o encontro casual de duas pessoas, e a trajetória que faziam juntos. Soa como algo conhecido, não?

Nós dançávamos como se estivessemos sobre a aurora do céu, levitando num sonho irealista, um verdadeiro paraíso das nuvens em meio a toda multidão. Imergindo cada vez mais nas profundezas daquela viciante melodia, afundando no oceano das emoções. Prestávamos atenção em nosso arredor? Não sei dizer ao certo, me preocupava mais o fato do fim musical ser próximo.

Nos olhavámos apaixonadamente como o primeiro amor de dois jovens inocentes, contudo, exalávamos ares de amantes de longa data, quais já haviam trocado dos mais ternos votos conjugais. A aquela altura roubávamos as atenções, todos olhavam o quanto os dois jovens alegres se divertiam na presença um do outro, mal sabiam elas que não se passava nada mais de um primeiro encontro inesperado.

Um fim magnífico dos instrumentais, enquanto meu coração batia de acelerado e gotículas se formavam no canto de minhas temporas. A música findou calmamente, da mesma forma que começará, mas se continuasse, dançaria incansavelmente por toda  noite. Por toda eternidade.

Parecia que a música daquele noite soava no ambiente, mesmo que apenas eu estivesse ali. Era como se eu pudesse ouvi-los. Talvez minha maior maldição seja a capacidade de uma memória impecável, se eu não recordace perfeitamente daquela ocasião, provavelmente estaria livre de meus pensamentos dolorosos agora.

Sinto sua falta...

Lamento por tudo que se prosseguiu após esse lindo baile, pela terrível história que foi narrada posteriormente. Foi minha culpa não conseguirmos seguir o amor que nos foi destinado pela melodia. Por me sentir enganada eu acabei o matando. Matando meu grande amor, por simplesmente almejar a vingança.

Vagueei até a sacada que o ambiente continha, uma vista agradável. Lágrimas escorreram de meu rosto, caiam lentamente sobre o apoio de pedra. Não se engane, não foram lágrimas de tristeza, prometi a alguém que recordaria-me com um sorriso no rosto desse fatídico dia. Foram lágrimas de arrependimento. Irônico pensar que lamentei meus equívocos em seu leito de morte.

Seguirei meu juramento. O que me resta é viver as boas memórias que me sobraram e pela vida que cedeu a mim. Sempre repudiarei sua escolha egoísta e infantil de partir em meu lugar, de não deixar eu pagar meus pecados, e sequer ter me dado a chance de decidir o destino de minha própria vida. Mas o que fazer? Você sempre foi assim, indomável e impossível, até no momento do adeus.

Me pego sorrindo novamente, você sempre teve o dom de me fazer sorrir em momentos inoportunos. Decido refazer o mesmo caminho por qual entrei nesse salão. Atravesso a porta me sentindo mais leve, liberta para prosseguir normalmente mais uma vez depois de tanto tempo.

"Encontre uma nova melodia", farei isso. Por nós.

Au revoir, chérie.

𝑽𝒂𝒍𝒔𝒆 𝒅𝒆 𝑳'𝒆́𝒕𝒆𝒓𝒏𝒊𝒕𝒆́Onde histórias criam vida. Descubra agora