A rotina sempre apronta das suas...

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Eles estavam na sala como sempre faziam depois do jantar, aproveitando, de modo despretensioso, o final daquele dia e assistindo, de modo mais despretensioso ainda, a televisão, pois sabiam que a programação daquele horário não os oferecia nada de impressionante mesmo. Eram um jovem casal que estavam junto há alguns anos, ele um operador de máquinas e ela uma vendedora de roupas, que se amavam muito, mas que constantemente entravam em uma invisível rotina causada por conta do dia-a-dia em seus trabalhos. Embora a rotina em questão fosse invisível aos olhos deles, ela consistia, contraditoriamente, em ver algo: a televisão. A TV, por sua vez, os oferecia uma programação que não exigia muita energia de suas mentes cansadas, formando assim uma harmonia que era agradável a ambos, os telespectadores e à televisão. Fato esse muito comum nos nossos lares, favorecendo a propagação dessa tão comum rotina, da qual somente a televisão fatura.
Mas neste dia que parecia ser tão comum, a TV se desligou sozinha. Do nada, simplesmente deixou de funcionar com um ruído decrescente, deixando a sala no escuro. Um silencio inesperado encheu o ambiente, acostumado a ouvir coisas como: “Compre tal coisa!”, “... é a cerveja mais gostosa”, e “Fulano te trai com sua melhor amiga”. Os dois se entreolharam, mas não se viram, afinal a luz estava apagada. Ela bateu o dedo no interruptor e a luz se acendeu, pode vê-lo em pé na frente do aparelho.
- Essa porcaria pifou! Nem terminei de pagar – disse ele – Vou ter que levar esse negócio para garantia, vai dar o maior trabalho, vamos ter que ficar dias, e até mesmo meses dependendo da boa vontade da loja, sem assistir, e eu vou ter que pagar por uma coisa que eu nem vou usar. Mas que coisa!
- Pois é – disse ela – logo hoje que eu tava a fim de ver TV. – disse ela, bocejando.
Ele a olhou com um olhar incisivo.
- Como assim “logo hoje”?! – disse ele, após observá-la - Assistimos esse troço todo santo dia.
- E temos outra opção?! – disse ela, entendendo o que aquele olhar dizia.
Quando eles menos esperavam, estavam em uma discussão tola e sem nenhum sentido aparente, mostrando assim mais uma das conseqüências da rotina: as brigas que vem do nada como uma televisão que pifou. Após meia hora discutindo, ela falou, como se para encerrar aquilo que já estava se estendendo mais que o suficiente:
- Mas eu só venho assistir esse treco para te acompanhar, pois você só faz isso depois do jantar!
- E eu só comprei esse negócio por sua causa – disse ele – já que você gosta tanto, pra assistirmos juntos!
De repente os dois ficaram em silêncio. Algo naquelas ultimas frases chamaram a atenção dos dois. Chegaram à conclusão de que só assistiam TV naquele horário pra ficarem juntos depois de um dia estafante, e que queriam somente a presença um do outro, e brigar por querer isso era estupidez. Eles se entreolharam vergonhosamente. Ela disse:
- Ern ... pois é, eu não sabia disso.
- Nem eu. – disse ele – Só vemos  TV por falta de algo que prenda nossa atenção.
- Acho que está na hora de termos um filho, isso sim prenderia muito nossa atenção – respondeu ela.
- É, isso é verdade. 
Eles se entreolharam de novo, desta vez sorrindo, e logo após se beijaram. Aconteceu que nesta noite ela estava no período fértil e mesmo quando a TV voltou da garantia, eles não a assistiram, pois ela estava de três meses, e a mãe dela, que não gostava de televisão, estava na casa para ajudar. Nos próximos quinze anos, assistiram muito pouco a TV, pois o Juninho adorava jogar vídeo-game como o pai, e ela voltara a estudar, cursando a faculdade. Dessa forma, eles puderam ver que quando não se tem a presença televisão a densidade demográfica pode aumentar e a vida pode ficar com mais conteúdo.  

A Programação Pode VariarOnde histórias criam vida. Descubra agora