Lembra de Mim

661 48 10
                                    

Istambul, 1998
Era uma manhã cinzenta de 1998, o céu ainda estava nublado depois da noite chuvosa, o barulho da pá na terra molhada com certeza seria inesquecível para os três meninos que choravam diante da cova, onde os adultos depositavam  seu pai, do lado contrário ao deles, duas meninas de mãos  dadas com o pai a tudo assistiam, a mais nova se soltou e deu a volta se aproximando das crianças, tinha três anos apenas, mas era esperta e tinha um coraçãozinho amoroso, os conhecidos mais próximos diziam que ela era gentil e carinhosa como sua falecida mãe que morreu no parto.
Ao se aproximar dos três irmãos,  ela pegou na mão do mais novo que se soltou  num movimento brusco, mas ela não desistiu, permaneceu ao lado dele apesar dos sinais que seu pai fazia para que voltasse.
As pessoas sairam  uma a uma, a poucos metros dali, um  carro oficial   aguardava para levar os órfãos para o abrigo. A menininha novamente se arriscou e pegar na mão do caçula,  que desta vez, por curiosidade a olhou… pequenos olhos verdes encontram pequenos olhos escuros… uma lágrima escorre pelo rostinho dela que com as costas da mão à enxugou, a pequena menininha com seu vestidinho preto decorado com minúsculas margaridas aplicadas em sua barra,  mesmo assim sorriu para consolá-lo, pegou sua mão, a virou com a palma para  cima e nela depositou um pequeno laço amarelo com uma margaridinha no centro.
_ Lembra de mim. Nunca se esqueça. Foi o que ela disse com sua vozinha infantil. _Quantos eu ficar grande, vou me casar com você menininho.
_Como vai me encontrar?
_Você  que vai me encontrar. Afirmou ela.
Ele ia devolver o objeto,  mas sendo literalmente puxada pelo pai e ela se foi…
Por anos ele lembrou dela que assim como as pequenas margaridas no vestidinho preto pareciam pequenas luzes,  naquele dia ela foi a única luz que brilhou, na verdade, nunca aquele menino voltou a ter a sensação de que em meio à  sua escuridão  algo fosse capaz de iluminar…

Istambul, 2020
Era primavera, as flores deixavam seu cheiro no ar, a pá na terra seca fazia seu barulho característico, diante das covas, ela infelizmente perdeu o pai e a irmã ao mesmo tempo, apenas poucas horas separou um evento trágico do outro. Vestida de negro da cabeça aos pés, permitiu que lágrimas escorressem livremente por sua face. Do lado contrário de onde ela estava, os parentes  do seu cunhado,  acompanharam o sepultamento, mas apenas um homem se aproximou.
_Meus pêsames senhorita.
_Obrigada.
_Este é o meu cartão,  precisamos nos reunir o mais breve possível. Por favor, entre em contato.
_ Nedim… Ela leu em voz alta o nome transcrito no pequeno papel. _ Senhor Nedim, estou de partida da Turquia, amanhã pela manhã. Sinto muito mas não poderei me encontrar com o senhor.
_ Quando retorna?
_ Pretendo não fazê-lo mais senhor.
_ Sua irmã deixou um filho, achei que se interessaria. Yusuf, tem quatro anos.
_O quê? Como assim, sobrinho?
_Não sabia? 
_Claro que não. Pode me levar até ele agora mesmo?
_ Se  é o que deseja, posso. Ela não viu, mas discretamente o homem sorriu, imaginava o que seu amigo faria diante da jovem de olhos verdes. Ele sempre buscou pela menininha de olhos da mesma cor. Seria mesmo ela? Pensou ele...

Na mansão,  Yamam aguardava a tia de Yusuf próximo ao portão,  assim que Nedim chegou, abriu a porta do carro para Seher. Neste momento olhos verdes e escuros se encontraram… ambos sentiram algo inexplicável mas se mantiveram calados. Os moradores, curiosos em descobrir como era a tia de Yusuf, saíram para o jardim e como em um filme, Yamam e Seher ficaram frente a frente.
_ Então esta é a tia desconhecida? Ele a analisa detalhadamente, a roupa escura tornava a pele dela ainda mais alva, os grandes olhos verdes se destacam no rosto delicado da jovem, era impossível não se impressionar com a beleza da tia de Yusuf. Yamam por alguns instantes, impactado pela figura daquela mulher,  se perdeu em pensamentos até que a voz dela o trouxe à realidade. 
_Não verdade  senhor Yamam, não sou tão desconhecida assim. Ela reconheceu a pequena verruga no olhos direito dele e seus olhos se encheram de lágrimas, sempre soube que Yamam Kirimli era o menininho daquele dia de 1998, mas nunca esteve tão perto como agora,   depois de vinte e dois anos pode encontrá-lo. Sabia tudo sobre ele através do noticiário.
_ Eu já li sobre ela. Neslihan, uma das funcionárias da casa,  não resistiu e pensou em voz alta.
Seher sorriu para a jovem mas não desviou o olhar do tio de Yusuf.
Sem se preocupar em saber sobre a vida dela, Yamam estendeu um envelope em direção à ela. _Pensei que viesse mas não esperava que o fizesse tão rápido, pegue, esta é  a parte da herança da sua irmã que lhe cabe. Agora, por favor vá  e não volte mais, não se preocupou com seu sobrinho até agora, significa que não precisa fazê-lo. Seher pegou o envelope que um dos seguranças a entregou,  calmamente o abriu, olhou o conteúdo e deu dois passos à frente diminuindo a distância entre eles  e sem que se esperasse, deferiu um sonoro tapa no rosto taciturno do homem.
__Não  vou me dar ao trabalho de discutir com uma pessoa tão arrogante e desagradável. Fechou calmamente o envelope e entregou para Nedim, deu meia volta e se dirigiu ao portão. Estava quase fora dos limites da mansão quando ouviu a voz de um menino que chamava  por ela.
_Tia Seher,  não vá. Seher se virou e viu um pequeno menininho , com cachinhos voando enquanto corria em sua direção, ela então se abaixa para recebê-lo. _ Mamãe falou que você viria quando ela não estivesse aqui e que se casaria com meu tio. Minha mãe foi para outro lugar. Sabia?
_ Sabia meu querido. Mas eu estarei aqui para você sempre.
_ Tia, você vai casar com meu tio?
_Querido , não sei do que está falando, mas não  pretendo me casar com seu tio.
_ Nem eu com ela.
_ Bem que mamãe disse que são dois teimosos. Tio Nedim, depois precisamos conversar.
Rindo, Nedim concordou,  o menino parecia um pequeno patrão como dizia o Cenger.
_Meu querido, eu preciso ir agora. Mas confie em mim, eu voltarei para você.
_Por que tem que ir? 
_Preciso fugir. Estão atrás de mim.
_ Seher, precisa de ajuda?
_ Nedim, não posso envolver você nisto.
Yamam, se interessou mas se limitou a ouvir.
_ Seher…
_ Quer mesmo me ajudar, Nedim?
_ Claro.
Seher pegou no telefone e ligou para alguém. Dez minutos depois, ainda no jardim todos viram quando um carro entrou. Dele uma jovem da mesma idade  que Seher desceu.
_ Amiga, estava preocupada.
_ Sevda, deixe que eu te apresente. Estes são,  Nedim,  Yamam e Yusuf, os outros não conheço pelo nome mas mais tarde Nedim os apresenta. Seher se abaixa para falar com o sobrinho. _ Querido, a tia tem um assunto de adultos agora, você pode nos deixar a sós?
_ Você vai embora? 
_ Irei querido, mas prometo voltar. Confie em mim.
_ Está bem, mamãe disse que eu devo confiar em você tia. Cabisbaixo ele entra em casa, com um olhar Nedim pede aos outros que também o façam.
_ Sevda, me dê a procuração para que eu assine. Após assinar os papéis sobre o capô do carro da recém chegada,  os devolve. _ Transfira, todas as ações para o nome de Yusuf, assim, talvez Emir perca o interesse. Tirando o anel do dedo ela o entrega à  amiga. _ Após concluída a transação, devolva àquele desonesto este anel.
_ Seher…
_ Sevda,  apenas faça o que te pedi. Ela olhava nos olhos da amiga como se estivesse dizendo adeus. _ Nedim, sei que é o homem de confiança desta família, por favor, indique dois homens de sua confiança para cuidar de Sevda, ela precisa de proteção.
_ Sim, Seher, farei isso.
_ Vocês dois precisam se unir para o bem de Yusuf.
_ Mas Seher…
_ Prefiro morrer a me casar com ele, Sevda. Papai e o meu padrinho fizeram esta promessa ridícula e como os dois estão mortos, não pretendo obedecer mais.
_ Tudo bem, mas sentirei saudades.
_ Não espere notícias minhas. 
_Seher.
_ Sim Nedim.
_ Posso te proteger.
_ Ninguém pode Nedim, nem a medida restritiva que tenho contra ele foi capaz. Preciso fugir o quanto antes. Sevda, peça um táxi, vou usar seu carro.
Antes de entrar no veículo, Seher olha para Yamam. Olhos verdes e escuros se encontram… Ela sorri, um sorriso triste, ele mantém o semblante fechado… uma lágrima escorre pelo rosto dela… com as costas da mão  ela a enxugou… ele dá um passo em direção à ela, por um breve momento  reconheceu o gesto, só não se lembrava de onde havia visto alguém fazer aquilo…
Seher parte deixando os três de pé no jardim.
_ Nedim, por favor, pode me passar os dados do sobrinho da minha amiga para que eu possa acatar as ordens dela?
_ Espere um pouco senhorita, antes de te passar os dados do meu sobrinho quero entender o que se passa. Vamos Nedim, vamos para o escritório. 
Os três alguns instantes depois estavam a portas fechadas em reunião.
_ Senhorita, por favor, nos diga o que foi tudo aquilo.
_ Tentarei ser breve e sucinta. Seher  quatro anos atrás  se tornou a única herdeira do seu Padrinho, Ozan Aslambey o que a tornou uma das jovens mais ricas da Turquia.
_ Como não  soube disso?
_ Seher impediu que a notícia vazasse  e tudo correu em segredo justiça. Eu fui nomeada por ela como representante legal, apenas eu apareço, poucos sabem quem, na verdade,  é  a herdeira.
_ De quem ela está fugindo?
_ Do seu noivo, seu pai e padrinho a prometeram, ela, em obediência aceitou mas sempre arrumou um empecilho para não  marcar a data,  ele é  cruel e a persegue. A moça abaixa a cabeça por um instante e ao voltar a falar, estava com a voz embargada e os olhos lacrimejando. _ A dois dias ele entrou na casa dela e diante do pai de Seher a agrediu, tentou  consumar o noivado e ao travar uma luta corporal com o genro o senhor Yusuf sofreu o infarto. Se vocês virem o corpo dela verão que está coberto de hematomas  por todo ele.
_ Onde está  este infeliz? Yamam estava vermelho de raiva diante do relato. _ E para onde ela fugiu?
_ Não sei, ela me pediu para comprar várias passagens de trem, uma de avião para a Espanha, alugar um carro e também passagem em um navio, todos em nome dela.
_ Mas…
_ Ela quer confundir as buscas.
_ Mas Sevda, ele com certeza vai procurar por ela no veleiro.
_ Veleiro
_ Seher é  conhecida por causa de uma viagem que fez com duração de três anos, Yamam. Respondendo à  sua pergunta, Nedim,  ela o vendeu a dois dias.
_ Nedim, traga este homem até mim, vou ensiná-lo  a não mexer com minha família.
_ Família? De onde veio isso agora? Acabou de maltratar Seher. 
_ Ela é a família de Yusuf.
_ Senhor Yamam, posso olhar para o seu rosto mais de perto?
Mesmo sem entender, ele permite. Ela se aproxima, olha atentamente para ele e sorri, o sorriso se expande… _ Alguma coisa errada com meu rosto, senhorita?
_ Nada senhor Yamam, nada. Mas encontrei nele algo revelador. Por um tempo ela se calou, pensativa andou de um lado para o outro. _ Acho que encontrei a solução. Nedim, pode me emprestar seu celular?
_ Claro.
Sevda faz uma ligação. _ Amiga, se esconda de hoje para amanhã, mas não vá, encontrei uma solução. Este número é  do senhor Nedim. A ligação foi encerrada. 
_ Qual a sua idéia?
_ Faremos a transferência das ações para Yusuf e nomearemos o senhor Yamam como representante. Mas, prevendo que além do interesse pela fortuna também há o desejo dele por ela, vou arrumar um marido para minha amiga.
_ O que? Nedim e Yamam disseram ao mesmo tempo.
_ Outro marido a colocaria em uma situação complicada da mesma forma.
_ Não se for o senhor, Yamam Kirimli, sei que a odeia e não tentaria nada com ela.
_ Não a odeio.
_ A forçaria a se entregar para o senhor?
_ Jamais.
_ Ou pode ser o senhor Nedim.
_ Senhorita, se olharmos no rosto dele saberemos que Yamam é o mais indicado.
_ Você  sabe?
_ Yusuf me contou  a história. 
_ Yusuf sabe?
_ A mãe dele estava lá. 
Ambos riram e Yamam sem entender nada, pediu explicação.
_ Yamam se não se casar com Seher, eu o farei. Sevda, ligue para ela e diga para voltar. Vou providenciar a papelada, nos casamos amanhã pela manhã.
_ Ok, Nedim.
_ Alto lá! Como um casamento pode salvá-la?
_ Àquele maldito não ousaria perseguir a esposa de alguém, ainda mais ela não tendo  fortuna.
_ Nedim, aqui está minha identidade, me casarei por Yusuf.
Sevda pega o telefone e liga para a amiga e deixa o viva voz ligado.
_ Seher, volte para a mansão,  pensei em um jeito de parar este indecente, onde você está?
_ No iate da família de Zeynep, passarei a noite aqui. O que está planejando fazer amiga?
_ Yamam Kirimli se casará com você, juntos, podem adotar Yusuf e tudo se ajeita
_ Amiga, eu jamais me casarei com ele.
_ Mas Seher…. Você sempre disse que se casaria com o menino…
Seher a interrompe. _Descobri que vivi um sonho, neste sonho, ele não era arrogante, grosseiro, mal educado e selvagem como hoje. Esqueça.
Um grande ruído foi ouvido do outro lado da ligação, seher passa a murmurar.
_Ele está na marina, vindo para o iate. Seher está em pânico. _Avise a polícia, por favor.
_Sevda o que está acontecendo? Yamam estava preocupado com o tom de voz da jovem. 
_ Nedim, reúna os homens, vamos. Venha Sevda, nos mostre o caminho.
Os três saíram em disparada acompanhados por seguranças, no caminho avisaram Firat. 
Ao chegarem no local, a polícia já estava, mas não havia sinal de Seher, marcas de arrombamento não foram detectadas. Sevda vai até Firat em busca de informações.
_ Chegamos aqui e encontramos assim, um carro está sendo perseguido mas não sabemos se Seher está com eles ou não. 
_ Boa noite,  sou Yamam Kirimli. Podemos olhar o local?
_Boa noite, sou o comissário Firat, irmão de Seher. Por favor, como sabe, não toquem em nada.
Nedim e Yamam andaram pelo convés de posse de lanternas em busca de pistas, com sua lanterna após caminhar pelo convés, o tio de Yusuf resolveu iluminar a água e foi aí que viu o braço de Seher boiando, a pele muito clara contrastava com a escuridão. De repente, sem aviso prévio,  saltou na água e Nedim imediatamente foi em direção ao local onde o amigo pulou, ficou surpreso ao ver que ele puxava o corpo imóvel de Seher ao mesmo tempo que ditava comandos 
_Nedim, uma ambulância,  rápido. Firat, me ajude a tirá-la da água. Sevda pegue todo o cobertor que encontrar, ela está gelada. 
Ela para fugir do seu agressor, pulou na água,  o tempo em que esteve submersa foi o bastante para causar hipotermia.

LEMBRA DE MIM Onde histórias criam vida. Descubra agora