De todas as ciências, somente a psiquiatria seria capaz de explicar o medo.
Mambana jamais evidenciaria isso com generosa exatidão visto que sua ocupação de garçonete no Bodegaia não permitia maiores arroubos na explicitação de potenciais detalhes sobre como — de fato — funcionam as emoções humanas a partir de caminhos neurais.
— Afinal de contas, é psiquiatria ou neurologia?!
Bernardo era um bom rapaz, porém longe de ligar lé-com-cré — nas rodas sociais menos abastadas, tal característica recebe o singelo impropério de jumento. Obviamente que alguns julgamentos morais, ou de personalidade, partem do exercício porco de se avaliar caráter pela inteligência, ou de não se levar muito a sério gente tida como burra.
— Psiquiatria veio primeiro; neurologia, depois, — explicou Mambana equilibrando pedidos sobre uma bandeja de metal entre as mesas.
As restrições de mobilidade e reunião promovidas pelos recorrentes decretos de contenção da pandemia — outra estratégia de causar certa estranheza, posto que visava bem mais não conduzir o sistema hospitalar ao colapso do que realmente proteger a saúde da massa populacional — quase levaram o Bodegaia a pique. O famoso bar — junto com o Esquina do Bacalhau — só não parou no saco-da-vida-eterna porque o dono guardava secretamente um orgulho monumental na austeridade da condução dos negócios: tivessem esses proprietários o deslumbre pelos nababos ofertados a quem sucesso financeiro obtivesse e o troço teria embalado mortalmente numa ladeira abaixo de causar calafrios.
A mesma prudência em relação a terapias e êxitos prometidos pela ciência diante de um objeto de observação completamente desconhecido. Eram tempos difíceis: ao longo das décadas que precederam a pandemia, foram discussões intermináveis sobre os efeitos deletérios do consumo contínuo de ovos. A imiscuição de tantos outros vírus ao longo de um século não fôra o bastante para que a humanidade aprendesse a lidar com portas estreitas e períodos de exceção quando alguma nova desse o ar da graça. Isso aplicado à economia necessária para se manter um bar com as portas abertas — mesmo com aqueles decretos draconianos — gerou um conhecimento onde não se entra de sola na hora de um perdularismo desenfreado, muito menos deixa-se de lado a cautela indispensável diante de uma farmacopeia disponível ao tratamento da doença que para a patuleia sem os altos saberes científicos era de dar frios na espinha.
— Medo! Já ouviu falar?! — reclamou Bernardo no dia em que avisou a amiga garçonete que não apareceria no Bodegaia enquanto as coisas não entrassem nos eixos.
O Puerto de Palos jogou longe sua vocação para marisco quando decidiu não apostar na duração do primeiro decreto: a princípio, seriam duas semanas e tudo retornaria ao bom curso.
Foram quatro meses com tudo absolutamente fechado.
A confusão e medo de Bernardo não vinha do nada ou aparecera riscando o céu feito uma aurora boreal: diante do desconhecido, nem mesmo a segura ciência tinha lá boa capacidade de antever qualquer coisa, guiando governanças a um manejo da crise razoavelmente semelhante a revólver na mão de macaco.
As mecânicas do medo não são tão fáceis de se identificar. No caso do jovem, um tempo cronológico ainda curto era uma variável indispensável para o melhor entendimento da equação. Não que Mambana fosse muito mais velha: as histórias oriundas dos convívios de mesa em mesa permitiam à amiga maior capacidade de sacar o que era vero e o que era apenas um recurso estratégico neurolinguístico nas tentativas de uma sedução com a profundidade de um pires.
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Medo
General FictionBernardo aproveita a noite de folga da amiga garçonete, Mambana, para se sentarem à mesa do mesmo bar onde ela trabalha para colocar a conversa em dia. Depois de um ano e meio ao sabor do medo e delírios provocados por inúmeras restrições impostas p...